Dia 21 de setembro é o Dia da Árvore e tivemos uma belíssima sincronicidade com a vitória dos povos indígenas na votação do STF (Supremo Tribunal Federal), que, por 9 a 2, julgou inconstitucional o Marco Temporal para demarcação das suas terras. “Suas terras”, sim, porque o Brasil é território indígena, um país com nome de árvore, que teve essas terras devastadas e repartidas pelos invasores europeus. Nada mais justo, portanto, que o STF tenha derrubado uma tese jurídica tendenciosa, elaborada para restringir o direito dos indígenas às terras onde já habitavam ou disputavam em 5 de outubro de 1988 (data da Constituição Federal) – uma tese que atendia aos interesses de ruralistas e desvalia os genocídios e as inúmeras violências na expulsão dos povos indígenas desde Cabral, avançando na ditadura empresarial-militar, até a Usina Hidrelétrica de Belo Monte e o garimpo criminoso que não tem fim.
Essa é a vitória importantíssima de uma batalha, mas a atenção precisa ser mantida e até redobrada, o que ficou claro mesmo nos votos favoráveis dos ministros Gilmar Mendes, para quem os nativos vivem na “pobreza” e de Dias Toffoli, que entende ser viável uma lei para regular atividade econômica nas terras indígenas, com aproveitamento dos recursos naturais, o potencial energético de rios ou a pesquisa e a lavra das riquezas minerais – mesmo que Toffoli ressalte a observância de normas ambientais, só a prática do garimpo ilegal demonstra a insegurança de se fazer cumprir uma lei como esta. Já a bancada do agronegócio no Congresso reagiu de imediato e buscou apoio da bancada da bala (Frente Parlamentar de Segurança Pública) para uma agenda de reuniões, audiências públicas e debates para que se encontre “uma abordagem equilibrada e consensual sobre o Marco Temporal”…
Agora vamos observar a comemoração dos indígenas que foram a Brasília para acompanhar a votação – a forma como se expressam os povos originários é sempre uma inspiração. Os indígenas ao dançar se agrupam e se movem como um único corpo, em passos curtinhos e cadenciados, formam círculos ondulantes, cantam ritmados invocando seus ancestrais e seus espíritos, soam chocalhos, tambores e vários instrumentos de sopro. Foi assim que se expressaram no dia 21, com sua dança linda, entremeada de lágrimas de emoção pela vitória no STF. É também através da dança que se expressam os africanos, e como dançam! Com energia, com pernas e braços frenéticos numa coreografia inusitada de ritmo e harmonia. Mia Couto, escritor e biólogo moçambicano, contou certa vez que é impossível para um africano conceber que uma pessoa não saiba dançar. É exato, afinal a dança não é uma habilidade, é essência do Ser, universal – haja visto o deus hindu Shiva. Mesmo quem julga não saber dançar, sente algo no seu íntimo que ameaça sacudir todo o corpo já nos primeiros acordes de um samba ou um reggae, entre tantos outros ritmos que embalam nossas almas.
Estou cursando um pós-graduação em Ciências Humanas, na PUCRS, e em uma disciplina com a historiadora e antropóloga Lilia Moritz Schwarcz, formidável, vimos um texto de 1657, Sermão do Espírito Santo (*). O Pe. Antônio Vieira desenvolveu conceitos de estátuas de mármore e de murta numa analogia aos europeus e aos indígenas, respectivamente – ele já considerava a colonização um ato de destruição. O mármore é um material duro, difícil de moldar, mas uma vez esculpida a estátua, ela é definitiva e irretocável – foi assim que os povos europeus se moldaram em questionamentos, argumentos, teimosias, discussões e raciocínios que definiram a filosofia ocidental. Já a murta é um arbusto de tamanho médio, comum nas matas, fácil de moldar em uma estátua, mas que exige estar sempre sendo trabalhada, reformada, caso contrário retoma sua forma original. Era assim que o europeu via o nativo do Novo Mundo, maleável, dócil e obediente na aceitação dos ensinamentos do Velho Mundo – uma criança que precisava de pais eruditos que lhe moldassem uma “civilização”, sob vigília constante para que não retornasse ao seu estado selvagem.
Acontece que temos todos nós, humanos, uma raiz comum originária muito profunda. Assim, não foi – não é e nunca será – possível enraizar essa ideia do homem acabado, afastando a complexidade do tornar-se e do reconstruir-se ininterruptamente, que é de nossa própria natureza. As evidências datam desde a arte rupestre dos povos primitivos, passando pelas mitologias do antigo Oriente e a filosofia da Grécia antiga, e talvez o melhor delineamento esteja em Jean Paul-Sartre (1905-1980): “O homem é o ser cuja existência precede a essência. A relação entre existência e essência não é igual no homem e nas coisas do mundo. A liberdade humana precede a essência do homem e torna-a possível: a essência do ser humano acha-se em suspenso na liberdade. Logo, aquilo que chamamos liberdade não pode se diferençar do ser da ‘realidade humana’. O homem não é primeiro para ser livre depois: não há diferença entre o ser do homem e seu ‘ser-livre’.”
O europeu pode se imaginar uma estátua de mármore e até se aferrar a essa ideia, mas o humano é “ser-livre” e jamais terá uma forma acabada, o que a vertiginosa tecnologia do nosso tempo, inclusive, já alça a outros patamares. É por isto que os povos originários são tão inspiradores. Para nós, brasileiros, mistura notória que somos de indígenas, africanos e europeus, só no observar de suas formas de expressão já vislumbramos nossas raízes. O ministro Gilmar Mendes, ao falar que existe pobreza, situação de miserabilidade (em aldeias indígenas), reproduz apenas a visão distorcida do invasor europeu. “Infelizmente ele representa uma classe do Judiciário, presente em diversas instâncias, país afora, com uma visão retrógrada sobre os povos indígenas. A gente precisa entender o que ele entende por isso. Porque viver de acordo com nossos usos e costumes não é ser pobre, muito pelo contrário. Nossa forma de vida é diferente, nosso modo de ser e estar no mundo está garantido na Constituição”, afirmou, ao site Sumaúma, o advogado Maurício Terena, coordenador jurídico na Articulação dos Povos Indígenas do Brasil.
É exatamente o que me falou, em 2017, um indígena da reserva Aldeia Velha, localizada em uma mata escura entre Arraial d’Ajuda e Trancoso, na Bahia. A reserva é longe da praia e ele percorre a estrada a pé para vender seus colares de sementes para os turistas. Ele me contou que o governo queria sempre derrubar as ocas “pobres” para construir casinhas “asseadas” com piso de lajota, e que eles persistiam em manter suas tradições – sequer podiam imaginar pisar em lajotas ao invés de pisar na terra. Ele me contou que raposas e tamanduás ainda vivem na mata e que as raposas avançavam numa fazenda de mamão papaia atrás da reserva e os cachorros as matavam, daí eles as recolhiam e preparavam a carne com marinadas de alecrim. Sua fala era suave ao ir me contando sobre o modo de vida do seu povo, assim como o seu sorriso ao nos convidar, a mim e ao meu filho, para visitarmos a reserva. Um dia terei a imensa alegria de pisar na sua terra com os pés descalços, onde “ser-livre” é murta que se molda plena de sua essência e nos garante um planeta para celebrarmos a Vida.
(*) Sermão do Espírito Santo (Pe. Antônio Vieira, 1657). Os que andastes pelo mundo, e entrastes em casas de prazer de príncipes, veríeis naqueles quadros e naquelas ruas dos jardins dois gêneros de estátuas muito diferentes, umas de mármore, outras de murta. A estátua de mármore custa muito a fazer, pela dureza e resistência da matéria; mas, depois de feita uma vez, não é necessário que lhe ponham mais a mão: sempre conserva e sustenta a mesma figura; a estátua de murta é mais fácil de formar, pela facilidade com que se dobram os ramos, mas é necessário andar sempre reformando e trabalhando nela, para que se conserve. Se deixa o jardineiro de assistir, em quatro dias sai um ramo que lhe atravessa os olhos, sai outro que lhe descompõe as orelhas, saem dois que de cinco dedos lhe fazem sete, e o que pouco antes era homem, já é uma confusão verde de murtas. Eis aqui a diferença que há entre umas nações e outras na doutrina da fé. Há umas nações naturalmente duras, tenazes e constantes, as quais dificultosamente recebem a fé e deixam os erros de seus antepassados; resistem com as armas, duvidam com o entendimento, repugnam com a vontade, cerram-se, teimam, argumentam, replicam, dão grande trabalho até se renderem; mas, uma vez rendidos, uma vez que receberam a fé, ficam nela firmes e constantes, como estátuas de mármore: não é necessário trabalhar mais com elas. Há outras nações, pelo contrário — e estas são as do Brasil —, que recebem tudo o que lhes ensinam, com grande docilidade e facilidade, sem argumentar, sem replicar, sem duvidar, sem resistir; mas são estátuas de murta que, em levantando a mão e a tesoura o jardineiro, logo perdem a nova figura, e tornam à bruteza antiga e natural, e a ser mato como dantes eram. É necessário que assista sempre a estas estátuas o mestre delas: uma vez, que lhes corte o que vicejam os olhos, para que creiam o que não veem; outra vez, que lhes cerceie o que vicejam as orelhas, para que não deem ouvidos às fábulas de seus antepassados; outra vez, que lhes decepe o que vicejam as mãos e os pés, para que se abstenham das ações e costumes bárbaros da gentilidade. E só desta maneira, trabalhando sempre contra a natureza do tronco e humor das raízes, se pode conservar nestas plantas rudes a forma não natural, e compostura dos ramos.
NOTA: Na quarta-feira, enquanto o STF julgava inconstitucional a tese do Marco Temporal, o Senado aprovou a toque de caixa um projeto no sentido contrário, que pode ser vetado pelo presidente Lula, o que não havia acontecido até o fechamento desta coluna.
Foto da Capa: Agência Brasil