Muita gente sentiu um alívio com a vitória do Lula. Especialmente aqueles que sabem bem o que isso significa: os jornalistas profissionais. Vi colegas chorarem de emoção. A recepção dos correspondentes estrangeiros durante a entrada do eleito na sala da coletiva no dia da eleição é apenas um exemplo dessa situação.
Confesso que ouvir tanta mentira sair da boca de um Presidente da República e, mesmo assim, ter que noticiar isso, sem conseguir passar a informação de que aquilo tudo que foi dito não existe, é uma das situações mais angustiantes de quem tem como matéria-prima a informação. Muitos jornalistas foram atacados, cerceados de terem seu direito de cobrir os acontecimentos. A imprensa sofreu violências de vários tipos. E a manipulação era tamanha que ainda divulgavam que se queria censura.
Antes de mais nada, quero deixar claro que simplesmente não dá para comparar o tratamento dado à imprensa pelo atual governo aos mandatos de Lula. E não é que não tenha tido problemas. Houve vários. Mas pelo menos, havia assessorias de imprensa que respeitavam minimamente a categoria. Quem aqui lembra que nem água foi disponibilizada no dia da posse do atual presidente? Saiba mais aqui.
Sem resposta, sem noção
Pois o tratamento durante a posse foi só o começo do que estava por vir. Além das declarações completamente sem pé nem cabeça, quem corre atrás das informações para montar uma narrativa para dar uma notícia, não tinha retorno das respectivas assessorias dos órgãos federais, com raríssimas exceções. Daniele Bragança, repórter e editora do site O Eco conta que o governo não se preocupava em dar resposta às solicitações dos jornalistas. Pior. Desmontou as estruturas de atendimento à imprensa. “Foram quase quatro anos de procura, o Ministério não quis responder”, escreveu ela em um grupo de jornalistas. Desconheço jornalista que tenha base histórica e consciência que tenha votado nesse cara que vai deixar a presidência.
Outro aspecto que faz com que jornalistas comemorem a vitória de Lula é porque mesmo sabendo do que estava por trás de tanta manipulação, precisava matar no peito a dor de ouvir absurdos. Inclusive quando estava na rua cobrindo alguma pauta. Além de desconhecidos nos insultarem, muita gente próxima, familiares acreditaram (alguns ainda acreditam) mais em fake news do que na nossa informação. Eu ouvi de uma pessoa da família, que fazia tempo que não via, esse tipo de coisa: “Então tu és a favor que o comunismo tome conta de todas as nossas coisas?” Isso porque eu simplesmente comentei que o que os apresentadores do programa “Pingos nos Is” estavam falando não era verdade. Mas o pior foi quando eu senti como se fosse uma flecha atravessando o meu coração: uma pessoa que amo, que fez parte da minha infância, afirmou que eu deveria aparecer só depois de estar “purificada”. Nesses momentos, não valia a pena argumentar. Aliás, muitas vezes, percebi que seria impossível desenvolver um diálogo, pois os mecanismos de disseminação de informações pintavam jornalistas, a imprensa como algo a ser combatido, atacado.
Perdi a conta de quantos amigos de infância, juventude, familiares postaram absurdos ou me enviaram mensagens absurdas. Fui obrigada a fingir que não vi, por uma questão de sobrevivência. Esse é um dos elementos desse momento histórico, que pretendo contar para as futuras gerações. Como jornalista, a gente vive os acontecimentos, o que é muito diferente de ficar sabendo por uma postagem de redes sociais. Nos últimos anos, mesmo afastada da hard news, do jornalismo diário, acompanho as notícias por meio de várias fontes. E confesso: os donos dos grandes veículos também contribuíram para vivermos esse momento tão turbulento. Por isso, vale reforçar: não confunda o jornalista com a opinião do veículo de comunicação.
Regulação é diferente de censura
O Intervozes Coletivo Brasil de Comunicação Social, cujo principal objetivo é a luta pelo direito à comunicação, a liberdade de expressão, por uma mídia democrática e uma internet livre e plural tem atuado para que haja uma regulação da mídia. Em seus posts no Instagram @intervozes, a organização tem procurado explicar o que isso significa. “A regulação da mídia é realidade em diversos países do mundo. Os Estados Unidos, Inglaterra, Canadá, Espanha, Portugal, França, Espanha e Suécia são alguns exemplos de democracias que implementaram regulações. Você já se perguntou por que pouco se fala nisso no Brasil? No Brasil, a concentração é tão absurda e oferece tanto poder à dita “grande mídia”, que boa parte da população é levada a acreditar que regulação é sinônimo de censura. Mas, na verdade, é a regulação que garante mais diversidade e pluralidade de ideias nos canais, fortalece a democracia, a diversidade de vozes e ajuda a combater a censura”.
O caso do que ocorreu com Jovem Pan é um exemplo nítido do quanto precisamos pensar, repensar a necessidade de se ter regulação. No documento “Fake news não é notícia. Desinformação não é jornalismo” que pode ser acessado aqui, várias organizações, incluindo a Federação Nacional de Jornalistas, explicitam a indignação pela emissora de rádio e outras plataformas de conteúdo em “propagar produtos da indústria da desinformação, que não têm origem certa, apuração verificável ou qualquer referencial nos princípios básicos do bom jornalismo e, no fundo, buscam destruir a credibilidade das instituições democráticas”.
Porque além da desinformação correr solta, ser impulsionada nas redes sociais e no próprio Google, há empresas de comunicação que fazem isso intencionalmente. Sugiro acompanharem o que se transformou o finado grupo Caldas Júnior, dono do Correio do Povo. Taí outro contexto que me machuca muito, pois sou cria do Correio. Saber o que já foi e o que se transformou o jornal é de cortar o coração. Foi lá que iniciei minha trajetória profissional. O grupo, que dispõe de jornal, rádio e TV (Record), foi comprado pelo grupo da Universal, do Edir Macedo, apoiador do atual governo. E a cobertura das eleições deixou muito a desejar (para não falar outra coisa).
Ou seja, além das pessoas serem bombardeadas com mentiras, intrigas, elas recebiam informações que as manipulavam descaradamente. Resultado: muitas perderam totalmente o senso crítico de analisar outros lados de um mesmo fato. Há vários casos de gente que conheço que ficava direto na frente da TV ou do computador assistindo barbaridades, acreditando no que estava ouvindo.
Precisamos reconstruir a confiança, as relações. Continuo achando que o mínimo a fazer é procurar ser coerente, ético e relevar. Procurar amar, ter compaixão. Muitos terão dificuldade de reconhecer o quanto foram enganados. As distorções sobre o que é censura e regulamentação indicam o quanto é urgente serem lançados projetos de alfabetização midiática. Um smartphone pode ser usado tanto para trazer benefícios para o dia a dia ou também para promover um estrago de dimensões impensáveis.
O jornalista Caio Salles acredita que uma grande parcela dessas pessoas vai começar a sair desse transe assim que perceberem que “sandices”, como o fechamento de igrejas, a legalização das drogas, a liberação indiscriminada de presos, a distribuição de kit gay nas escolas, entre outras coisas, não vão acontecer. “Isso deve até causar problemas psicológicos em uma galera!”
O documentarista e criador do Projeto Verde Mar acha que é importante considerar vários meandros desse contexto. “Eles têm redes muito bem estabelecidas e disseminam eficientemente as mensagens que querem. Independentemente da grana da Secom (Secretaria Especial de Comunicação Social), vão continuar operando essas redes, com narrativas estapafúrdias para manter inflamado esse núcleo mais duro da extrema direita. Precisamos entender esses mecanismos de disseminação dessas histórias malucas e nos apropriar deles para conseguir comunicar sobre temas relevantes. Vale lembrar que em 2018 eles não tinham a máquina e, com o apoio do empresariado fascista, conseguiram eleger esse cara”.
Caio, que está à frente do canal Cumulus TV no YouTube, faz uma observação que entendo ser muito lúcida e pertinente. “Nessa eleição, não fosse o esforço de muita gente influente nas redes, como Felipe Neto, Anitta e Janones, talvez não tivéssemos conseguido esses dois milhões de votos a mais. Ainda assim, foi um estilo de comunicação centralizada nessas figuras. A comunicação deles (do presidente) é descentralizada. As mensagens são distribuídas pelo “tio do Zap” e isso traz uma proximidade para as pessoas. É mais fácil acreditarem no tio do Zap do que na Anitta ou no Felipe. O que quero dizer é que é mais fácil desqualificar uma pessoa do que uma mensagem, por isso, precisamos conseguir manter essa mobilização nas redes e formar nossos “tios do Zap” pra ir sufocando essa gente nesses espaços. Nesse sentido, por mais que não me sinta à vontade com a forma e veja uma promoção pessoal forte, acho que o Janones teve um papel fundamental nessa mobilização de tios do Zap no campo progressista”.
As colocações do Caio me fizeram repensar, pensar em formatos diferentes do exercício do jornalismo. E mais, percebi que esse debate (porque não um hackathon?) precisa envolver jornalistas, comunicadores de distintos expertises e idades. Tem muita coisa que os nativos digitais tem a nos ensinar e vice-versa. O certo é que tudo isso que passamos merece muita reflexão. Mais que isso. Debate. Ação. Mudança.
Por um Conselho Profissional de Jornalismo
Júlio Ottoboni, jornalista diplomado com 38 anos de profissão e pós-graduado em jornalismo científico e ambiental, espera que o presidente eleito entenda a importância de se ter uma imprensa forte e segura para a democracia. Com passagens em vários jornais da grande imprensa de São Paulo, Rio de Janeiro e do Paraná, ele defende a criação do Conselho Federal de Jornalismo.
“Vimos o péssimo jornalismo atuando como ferramenta golpista e de interesse governamental. Imprensa livre não se confunde com se ter regras claras para o exercício da profissão de jornalista. Inclusive com exames de ordem, como acontece com os advogados. Liberdade de expressão não é liberdade de imprensa, que fique bem claro isso. Elas podem ter pontos comuns, entretanto são conceitualmente diferentes. Mas a responsabilidade pela informação, como se viu tanto na pandemia como nas eleições e em todo governo Bolsonaro, veio da imprensa e de jornalistas qualificados e com formação acadêmica sólida”.
Júlio salienta que o próprio combate às fake news partiu de veículos de comunicação e de grupos de jornalistas conhecedores das técnicas de construção da notícia e de sua arquitetura final. “Isso é fundamental para o exercício da profissão com profundo senso ético e de responsabilidade social. Só retomaremos o jornalismo de qualidade, crucial para a manutenção democrática quando for permitido ter nosso conselho. Chega de sermos alijados de nossos direitos como jornalistas e termos regras e exigências para a prática profissional”.
Até a posse do novo (nem tão novo assim) presidente, há muita água para rolar. Há muitas demandas reprimidas e o um Congresso, digamos assim, com uma boa parcela pouco preocupada com a transparência das informações (até porque muitos tem uma ficha corrida preocupante). A questão é que você, leitor, precisa assumir o seu poder, o seu compromisso com a civilidade. Defender a democracia, a participação e até mesmo a existência de ambientes naturais na Amazônia (para continuarmos tendo chuva) não é nenhum bicho de sete cabeças. Ou você é daqueles que nunca comparece em reunião de condomínio e depois reclama que o corredor está sempre sujo?