Estava aqui pensando na Flor de Lótus. Mais precisamente na lama onde suas raízes estão fixadas, bem no fundo do lago. O simbolismo dessa planta está justamente na sua capacidade de crescer em meio ao lodo. Então, podemos intuir que a lama é tida como um lado negativo na vida da flor, que bravamente conseguiu superar. A lama onde sua semente germina. Que a nutre, a protege e a permite florescer. Pensando assim, onde estaria o problema do lodo? Por que ele é gosmento, desconfortável e sujo? Aprendemos isso há gerações: lama é derrota. Fulano tá na lama! Um fracassado, a gente pensa. A lama é uma zona complicada de atravessar. Crescer ali requer resiliência. Imagino um ambiente hostil, cheio de adversidades, obstáculos e superações. Tipo a vida. Quero deixar claro que não estou falando naquela lama onde os porcos se refrescam. Nessa dá até pra imaginar um certo sorriso no rosto de quem para pra pensar e entende que aquela gosma de terra é geladinha e refresca o corpo quente do porquinho. E ainda protege do sol. Mais lindo fica. Tava pensando é na lama pejorativa, aquela que dá nojo. A que suja só de encostar. Aquela que sentimos agonia quando, por ventura, pisamos no fundo de um lago. Logo ela, que contém água, terra, minerais e nutrientes. Muitas coisas são essenciais na vida de qualquer espécie deste planeta. Inclusive a dos seres humanos, que se acham tão exclusivos quanto às suas necessidades. Uma fama um tanto quanto indigna para a lama, diga-se de passagem. Olhar para uma flor de Lótus e pensar: nossa, como uma flor tão linda nasce de uma coisa tão asquerosa é, pra dizer o mínimo, simplista e superficial. Na minha humilde opinião, essa lama só perde em beleza para a flor de Lótus quando pensamos no sentido visual. De resto, arrisco-me a dizer que ela é até mais linda. Que ela nutre e protege, já falei. Mas que seu desconforto e toda essa má fama possibilitam um enorme poder de ensinamento, crescimento e sabedoria, ainda não. Vamos combinar que essas características são dignas de estarem desfilando na passarela da psique. A lama não representa apenas o desconfortável, ela fala das profundezas da nossa alma. O desconforto nos desacomoda, nos faz questionar se aquilo é aquilo mesmo. Mergulhar pra dentro de si, ou ao menos tentar, nos mostra diferentes perspectivas, possibilidades e sensações. Claro que ficar cara a cara consigo mesmo não é das tarefas mais fáceis. Mas já entendi que pode ser libertador. E ousado. Acho até que, se a felicidade tem um lugar, deve ser por ali, onde estamos em paz com nossas sombras. E quando falo em se conhecer, é se conhecer mesmo, sem as falsas imagens que inventamos, sem o disfarce do profissional super competente, da mulher mais gostosa da academia, da mãe perfeita, da filha exemplar, do cara “nunca broxei nessa vida”. Sem máscaras. Nu com as nossas dores e prazeres. Daí, uma boa surpresa: deparar-se com um ser falho e cheio de defeitos dói, mas nos engrandece. Louco, né? Ou não, porque se pensarmos bem, a sabedoria é humilde. Quem sabe se cobrar demais não está relacionado à tentativa de provar algo que nem tem mais razão de ser, mas que por aquele padrão de repetição, seguimos. Ou então, já pensou que ser tão apegado à aparência pode esconder uma insegurança gigantesca que não pode aparecer porque não temos a mínima ideia de como lidar com isso? Vai saber. A verdade é que não aprendemos a mexer na lama, a nos sujar um pouco, nos despir e nos expor. Nem pra nós mesmos. Quando se trata de encarar nossos fantasmas, somos meros caretas recatados. É por essas e outras que enxergar-se é revolucionário! Inclusive, corremos sério risco de entender a nossa pequenez diante do universo. Sei que isso pode dar uma briga danada com o ego, mas também sei que pode tirar um baita peso dos ombros. Talvez aquele apego e o medo de mudar vão perder força, e lançar novos voos pode não ser tão absurdo assim. Imagina se, mexendo no lodo, a gente desperte e descubra novos dons? Imagina se a vida fica mais leve? E ainda sobre um tempinho pra se (re)conhecer? Se duvidar, a gente fica até mais bonita.
Acho que andar pela lama pode fazer muito bem. Até pra pele.
Rúbia Ribeiro é mãe, enfermeira, sagitariana, apaixonada pelas palavras, por viagens e por conversas sinceras.
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Foto da Capa: Gerada por IA.