Tenho alguma inveja das pessoas com fé inabalável. Quer na existência de um ser divino a quem chamam de Deus, Jeová, Alá ou como queiram, quer na inexistência absoluta de qualquer coisa que não seja comprovada cientificamente. Acreditar piamente é algo que me escapa à compreensão, mas não me causa estranhamento. Eu mesma adoraria crer sem questionamentos em algo.
Criada como católica (cheguei a fazer a confirmação do batismo, a crisma, aos 12 anos), tive um começo de vida tão privilegiado que só me vi questionando de fato (não apenas racionalmente) minhas crenças metafísicas aos 22 anos, com a morte do meu pai. Desde a adolescência, assumira uma postura amplamente anticlerical, sem pensar muito sobre a lógica existencial das religiões.
Nunca tendo enfrentado doença grave ou morte de alguém próximo até então, a questão de onde viemos e para onde vamos não passava de uma abstração. Assim, serviam-me tanto a explicação de que “quando morremos, acaba” quanto as de que “um dia todos vamos nos encontrar em outro plano” e suas variáveis. Confesso que o materialismo da adolescência e do princípio da vida adulta sempre me fizeram flertar com mais afinco com a ideia de que morreu, acabou.
Quase três décadas depois desse primeiro (e traumático) enfrentamento com a finitude da vida neste planeta, ainda não encontrei uma resposta que me satisfaça plenamente ou na qual eu acredite com mais convicção. Uma certeza, porém, é indiscutível: aquele que é lembrado vive. A máxima que aprendi com minha querida amiga Ana Maria Bahiana me vem à mente toda vez que um dos “meus mortos” me faz uma visita. Passados mais de 27 anos do dia em que deu por encerrada sua existência física por aqui, seu Jurandir segue ao meu lado. Mais: está definitivamente presente em cada dia da existência da primeira e única neta que nasceu década e meia depois que ele se foi.
Neste fim de semana, outra presença constante do meu cotidiano desde o final de 1995 esteve conosco para uma conversa mais longa do que o habitual. Pelas mãos da minha tia emprestada Jeanette, a “Vó Vina” do Márcio chegou em casa na forma de dezenas de fascículos de artes manuais do final da década de 1960 que ela usava como fonte de inspiração para seus bordados, tricôs e crochês – conhecidos e reconhecidos por muita gente até hoje.
Ao receber esse lindo presente extemporâneo, me dei conta de que tem sido por instrumentos de trabalho e peças tecidas, bordadas e costuradas por elas que mantenho as mulheres que vieram e se foram antes de mim (e da Lina) por perto. Na colcha de crochê que foi a peça central da decoração do quarto de bebê da minha filha, minha avó Alaides esteve conosco ao longo de todos os primeiros anos da vida da bisneta que ela não chegou a conhecer. No trilho de trama finíssima sobre a mesa da sala de jantar, a presença era a da bisa Eloisa, mãe do meu pai. Nas paredes, bordados emoldurados trazem de volta as bisas Lilia e Etelvina, avós paterna e materna do marido, além da mãe dele, Laila, que partiu quando a pequena não havia completado dois anos.
Dessa reflexão, depreendo mais um motivo para seguir tecendo, costurando, bordando. Ao produzirmos peças com as próprias mãos, estamos deixando uma maneira de seguirmos vivos. Fotos, textos e vídeos deixam lembranças, é verdade, mas a energia impressa pelas horas que nos envolvemos em fios, tecidos e tramas deposita um valor ainda mais inestimável a cada objeto. Não sou de guardar muitas coisas, mas concordo que itens bem escolhidos nos ajudam a manter nossos mortos sempre por perto. Como você faz isso?