Já que a ironia é o tom preponderante do mais recente texto de Sheila Leirner sobre coletivo de curadores e sua proposta curatorial para a 35ª Bienal de São Paulo, permito-me começar por ela. Não porque a ironia em si mesma, enquanto expediente retórico, exija estudo. Mas sobretudo porque, aos leitores e leitoras atentas, não lhes terá escapado que a ironia leirneriana apareceu ali como um bom e velho mecanismo defensivo.
Ou seja, aquela típica reação evidenciada por um ‘eu’ (ou um ‘ego’) diante de uma situação que o coloca em certo perigo psíquico, apresentando-se como ameaçadora e capaz de comprometer a sua própria integridade. Embora alguns possam desde já objetar que cometo aqui um ad hominem arrojado, mascarado de psicanálise, ainda assim não me parece de todo errado recorrer ao freudismo; pois se trata de fato de um confronto de identidades fundamentadas por visões de mundo. E quem nos revela isso não sou eu, mas a própria autora ao, cometendo um infeliz lapso de linguagem, criticar os “identitarismos” na arte contemporânea brasileira. Pois, vejam: trata-se de um confronto de ‘eus’, de identidades, subjetividades – coisas que não são garantidas de modo autônomo desde sempre, mas que são constantemente urdidas em meio ao campo social, político e da alteridade. Neste seu texto-queixume, a dama da Ordem das Artes e Letras mais uma vez se pôs nua. Ademais, é evidente que a conhecida mentalidade das sinhás fará com que se incomodem radicalmente ao ver os movimentos coreografados de uma retomada crítica daquelas opressões históricas que seus privilégios herdados continuam tecendo ao longo dos anos até hoje, no Brasil de 2022. E diante da impossibilidade do castigo real, sobra, patético, o simbólico. Que, no entanto, não devemos mais tolerar, muito menos deixar passar. Quantos destes privilégios, por exemplo, será que a colocaram nos postos que ocupa hoje? Quantos deles foram responsáveis pelas suas premiações e pelo seu reconhecimento? Realmente, o Brasil, quando visto de Paris, ostentará certas incomensurabilidades. E, para alguns, Paris tem sido desde 2018 o leitmotif de uma fuga perfeita.
Acontece que a ironia (voltando a ela) é um expediente frio cujo ‘sucesso’ demanda que o objeto ironizado seja submetido a uma distância imaginária, na qual não haverá mais possibilidade de implicação, responsabilidade, muito menos generosidade. Quando Leirner fala da futura curadoria da 35ª Bienal de São Paulo como uma “pérola”, quer na verdade dizê-la “barroca” em um sentido nostálgico, galhofeiro: perturbadora, estranha, alheia ao padrão com o qual ela, em suas próprias elucubrações e saberes, mediu até agora a arte, a curadoria e a crítica. Ao chamá-la de “pérola” não lhe atribuí um valor, pelo contrário. Ela a menospreza como uma criação bizarra e incompreensível, fazendo coro ao conhecido sarcasmo da expressão popular. A sua incompreensão, aliás, é frequentemente aludida nos dois textos (o da Folha e o de seu blog pessoal sobre a Bienal. E basta lê-los para matar a charada: “Não entendi, e duvido que alguém entendeu…”; “Procurei, mas não achei…”; “… desisti do artigo”; etc. Os muitos anos de crítica, formação pessoal, curadoria e conhecimento das práticas artísticas e humanísticas infelizmente não lhe mostraram que diante daquilo que não conhecemos, resta-nos calar e buscar entender, fazendo perguntas, pesquisando e assim por diante. Na falta de humildade, e com vetusta impaciência, a pressa acabou sendo a inimiga da compreensão. E a língua da grande dama – ferina, no caso – pagou um preço caro pela sua própria ignorância. Feito uma personagem alienada de T. S. Eliot (que também não era flor que se cheire, embora tenha produzido lindas metáforas), Leirner ficou como uma das dignas, mas obtusas, senhoras de salão em A Canção de Amor de J. Alfred Prufrock: “In the room the women come and go. Talking of Michelangelo”.
Sob as veleidades e afetações típicas do seu métier (que devemos saber jogar sem ferir ou escarnecer, mas usar para descrever; porque no fim das contas a ausência de capacidade descritiva é o que deixa a arte sempre em segundo plano), abundam os indícios identitários da branquitude e de sua associação orgulhosa com ela, feito uma vencedora triunfante. Ao falar de “curadores bem-vestidos e bem penteados” (itálico meu, para lhes chamar bem atenção), indicá-los como “garotos” e “mocinhos”, ou “papagaios” “medíocres” e “inoportunos”, Leirner faz com isso as concessões mais perfeitas, ainda que as ignore, ao racismo recreativo, dando os braços ao reacionarismo conservador mais vil que o Brasil já testemunhou. Um racismo meio velado, très chic e très sympa, que esconde sob o verniz do palavrório pseudocrítico os muitos estereótipos conhecidos que continuam colonizando nossas mentes e relações e operando, insidiosamente, as muitas modalidades de opressão e as ferramentas simbólicas de controle das pessoas negras. Quem leu Stuart Hall e, sobretudo, Patrícia Hill Collins saberá do que estou falando. E, portanto, terá as antenas de fora, aptas a captar as perversidades, ainda que convenientemente disfarçadas de ironias, blagues ou queixumes críticos.
Isso tudo a ironia distanciada e fria de Leirner esconde sob o pretexto de uma crítica contundente aos “identitarismos dogmáticos” que, para ela, não fazem absolutamente nada pela arte e são, num entendimento canhestro que só uma Olavete raiz poderia alcançar, “uma ameaça à democracia”. Seu modo peculiarmente conservador, desinformado e reacionário de compreensão do mundo e das relações sociais, sobretudo as brasileiras – ainda hoje marcadas pela manutenção das violências reais e simbólicas do passado que nunca foram elaboradas coletiva e adequadamente – não aparece apenas em seu mais novo texto publicado pela Folha de São Paulo. Mas se evidencia orgulhoso e portentoso em seu blog pessoal, atingindo paroxismos éticos que deveriam nos causar repulsa, como em A aberração revisionista e cancelista chamada Marilene Felinto ou Brasileiro, pare de negar!, ambos agrupados sobre a interessante tag “racismo”. Não é de hoje, portanto, que a dama parisiense se incomoda com as visões críticas da arte e da cultura contemporânea e nelas mete sua imunda colher de chá. Aos que desejam, por curiosidade, conhecer o conteúdo dessas opiniões contundentes, embora fantasiosas, deixo um alerta: ao mexer no lixo, cuidado com o chorume.
Chegamos então aqui ao ponto que de fato nos interessa. Ao da visão de arte. Não uma visão ingênua e romantizada, mas ao da sua visão crítica: capaz de fazer comparações, atenta às escovações da história a contrapelo, interessada pela palavra e voz dos artistas, zelosa às denúncias e aos testemunhos, desconfiada, investigativa. Esta visão compreende a arte, depois de um estudo de sua história e do reconhecimento de sua heteronomia radical (pois não há arte fora de uma sociedade), como aquela narrativa triunfalista em que os canonizados silenciam, por um motivo sempre questionável e nunca imune à dúvida, o protagonismo de outros tantos que restaram silenciados, esquecidos da farsesca, embora grandiloquente, História da Arte. Dado o fato inegável de que a arte só surge no núcleo de uma sociedade, ela mesma eivada por relações sociais desiguais, cumpre inferir o fato de que a arte também é marcada por essa desigualdade. E a sua história, ou melhor, a invenção de sua historicidade, traz isso continuamente à tona; até mesmo esforçando-se por recobrir a farsa com as velaturas positivistas.
Por outro lado, hoje entendemos que, malgrado suas vicissitudes sociais e históricas, a arte pode ser compreendida como um convite para o encontro de outras mentes, subjetividades e perspectivas. Encontro que demanda demora, paciência, compreensão e um tempo todo seu que, no mais das vezes, não é necessariamente compatível com o tempo do mundo. A ideia de contemplar justamente essa dilatação da temporalidade a qual a arte nos convida, bem como a de sair provisoriamente dos ritmos e ordenamentos da vida (nem que seja para voltar a eles depois), parece-me corresponder com a proposta curatorial dessa próxima Bienal de São Paulo. Em que,
“inspirando-se em percepções não lineares nem progressivas sobre o tempo, a 35ª Bienal de São Paulo propõe ainda uma reflexão sobre como diferentes registros de temporalidade podem gerar outros modos de produzir, sentir, expor e nos relacionarmos com as práticas artísticas. Tempos espiralares, fractais, curvos; cadências que movimentam corpos, dilatam e contraem espaços, e que não cabem, portanto, em cronologias ou sequenciamentos. Esse conjunto imensurável de possibilidades de viver o tempo está no centro de nosso interesse curatorial” (Diane Lima, Grada Kilomba, Hélio Menezes e Manuel Borja-Ville, Coreografias do Impossível, 2022).
Quem conseguir ler atentamente, entenderá que aí, no centro desse interesse, encontra-se finalmente a abertura para uma (futura) história da arte para além das restrições, opressões e silenciamentos lentamente construídos por um cânone que já conhecemos muito bem e que evidencia suas limitações não só criativas, mas filosóficas e humanas. A proposta curatorial não está mais entendendo, nem almejando entender, aquela “arte” de que Leirner sente “falta”, uma arte com A maiúsculo e da qual ela reclama a todo momento em seu texto. Embora a curadoria da Bienal esteja disposta, isso sim, a compreender os “ritmos, as ferramentas, as estratégias, tecnologias e procedimentos simbólicos, econômicos e jurídicos” que saberes múltiplos produzem em diferentes exercícios poéticos, tenham eles ganhado ou não a etiqueta de qualidade “arte”. Ou seja, o conceito extremamente elástico e poroso por meio do qual se exercem há séculos inúmeros mecanismos de canonização, legitimação e artificação em detrimento de exclusões e elisões que, quando olhadas com mais demora, mostram-se absurdos. Eis aí, portanto, a grande discordância de fundo, à parte da ironia ignorante, de Leirner. É uma visão da arte que mudou, ainda que alguns agentes do sistema não consigam mais vê-la e, portanto, compreendê-la. Ainda que um mercado não consiga mais vendê-la, precisando reajustar-se. Reencena-se aqui não mais uma querelle des anciens et des modernes, mas uma querela social entre opressão e privilégio cujo centro está ocupado e organizado ao redor de uma disputa sobre a visão de arte. É essa disputa que dinamiza, em nosso tempo, as coisas.
A 35ª Bienal de São Paulo será imensa e abrirá uma possibilidade talvez ainda inaudita para a retomada do conceito de arte e sua transformação diante do cenário contemporâneo, onde a crítica, em seu sentido filosófico e ético, continua viva, pensando a sociedade e seu futuro. Transformação que acarreta uma mudança, ou um deslocamento repercussivo, também em outras diversas dimensões das práticas sociais artísticas, como a curadoria, a crítica de arte, a apreciação e a comercialização. Ainda não é tempo de criticar, mas de aprimorar a sensibilidade, aguçar os sentidos para prestar máxima atenção e perder-se, sem tempo, no encontro com as múltiplas plissagens epistemológicas desdobradas por instrumentos, ferramentas, tecnologias, estratégias, saberes e procedimentos simbólicos, entre os quais se encontra também aquela ‘arte’ reconhecida por uma velha-guarda conservadora e, neste caso de hoje, reacionária. Afinal de contas, conforme afirmou Alva Nöe (2015), a arte não passa, na verdade, de uma estranha e peculiar ferramenta por meio da qual realizamos ações e mostramos continuamente a nós mesmos, nossos modos de pensamento e organização.
Que a política esteja aí inserida, tematizada, problematizada, ou que a política se faça também através da arte, sobretudo no enlace utópico de uma transformação do mundo e de um aprimoramento dos direitos, isso tudo vem em boa, em ótima hora. E se o preço for, no fim das contas, o abalo de certas tradições que embasaram e continuam embasando identidades e identificações, que o paguemos com gosto. Que saldemos as dívidas. Que zeremos a banca. Aos egos conservadores, que lhes reste um melancólico e ensimesmado lamento. Porque a arte, amigas e amigos, parece ter mudado de novo.