Na bolha cada vez mais restrita de pessoas que se importam com coisas assim, duas listas estiveram no centro de algumas discussões na semana passada. A primeira delas foi um caderno especial de breves resenhas indicando as melhores “leituras para o verão” na atual temporada de lançamentos literários no mercado editorial americano, dentre outras dicas de possível relevância. A segunda, a lista da Folha de São Paulo com os melhores romances do século XXI, que provocou a sua multifacetada cota de polêmicas por um sem número inevitável de fatores. Vamos falar brevemente sobre as duas.
No caso da primeira lista, ela foi publicada com pompa e circunstância por vários jornais americanos, mas os casos mais rumorosos foram mesmo os do Chicago Sun Times e do Philadelphia Inquirer, dois tradicionais veículos de mídia impressa. O material em questão não foi produzido pela própria redação de nenhum deles, mas sim vendido a mais de um veículo pela agência King Features, pertencente ao grupo de mídia Hearst (outra corporação tradicional do jornalismo americano, e, como costuma ser comum nessas grandes empresas de mídia, cercada por uma nuvem de denúncias de escândalos, manipulação do público e jornalismo marrom desde a primeira metade do já falecido século XX).
A questão é que alguém na cadeia de produção desse caderno especial (não cheguei a pesquisar a fundo, o que vi é que apareceu um jornalista chamado Marco Buscaglia assumindo a culpa, mas nem sei se essa pessoa existe mesmo) decidiu que fazer uma lista com 15 “leituras para o verão” era uma tarefa chata e cansativa (e é mesmo, embora talvez os meus motivos para dizer isso sejam diversos dos do suposto Buscaglia, falo disso mais adiante) e jogou algum prompt numa ferramenta de inteligência artificial. A ferramenta, que ainda não foi identificada (embora o New York Times especule que tenha sido a Claude, da qual, antes deste episódio, eu nunca tinha ouvido falar), produziu uma lista de 15 títulos, com sinopse e tudo, em que 10 livros mencionados nunca haviam sido escritos e, entre os cinco de fato existentes, havia atribuições erradas de autores.
Esse é o tipo de episódio pitoresco que provoca uma discussão potencialmente boa, mas que logo descamba porque as pessoas não estão preocupadas com a discussão em si, e sim em reforçar seus próprios pontos. Ainda bem que vocês aí têm a mim aqui para fazer exatamente o mesmo, mas ao menos vou usar um pouco de humor. De nada. Vi um alguém qualquer na internet comentar o assunto, centrando-se em um elemento que, é claro, é inescapável: o episódio era uma deliciosa fábula admonitória sobre os perigos da preguiça no ofício do jornalismo. E esse é um caso em que posso entender a preguiça como quase justificável.
“Leituras de verão”
Ao longo de um bom período de minha carreira em redação, fui setorista de literatura, o que significa que coube a mim fazer algumas listas como essa, a das “leituras de verão”, uma tarefa que sempre executei, mas sempre deplorei com todas as minhas forças, mais pelo recorte preguiçoso com que pautas assim são pensadas. No geral, não gosto de fazer listas, mas sei que elas são populares porque eu mesmo curto lê-las quando o assunto me interessa, então a sua existência não me incomodava, mas esse conceito que já parecia pronto antes de qualquer linha ser escrita: “livro de verão”.
O que é uma “leitura de verão”? Que tipo de livro se lê no verão que não se poderia ler no inverno, por exemplo? Eram perguntas que eu constantemente fazia a quem me passava essa atribuição – e aqui talvez caiba um parêntese: no jornalismo diário, pela forma como ele é estruturado, ideias são “commodities” muito valorizadas. Deve ser por isso que normalmente quem tem ideias em uma redação quase nunca se dedica a executá-las: pelo risco de, ao pôr a mão na massa, comprovar que a ideia não era tão boa assim desde a origem ou era simplesmente inexecutável. Se você manda outros fazerem, sempre há o recurso de pôr a culpa em quem fez se o resultado não cumpriu a expectativa.
O problema é que toda vez que essa pergunta era feita, a resposta variava de acordo com o interlocutor, mostrando a fragilidade do conceito que talvez exigisse uma outra ideia, mas ninguém quer abrir mão de uma ideia em redação de jornal, já que elas são matéria-prima escassa e valorizada, como comentei, ao ponto de apenas editores e quadros especiais as terem… Leituras de verão seriam obras de literatura escapista de modo geral? Seriam romances policiais ao estilo dos de Agatha Christie ou Conan Doyle? Seria a horrenda literatura sentimental de banca de jornal que antes era publicada em formato bolso e papel vagabundo e, depois do fenômeno Cinquenta Tons de Cinza, ganhou formato padrão e papel pólen? Seriam leituras de verão obras curtas para ler em uma tarde ou livros de mil páginas que alguém só conseguiria concluir num intervalo das pressões diárias trazido pelo veraneio longo daquele tipo que nem se tem mais, a bem dizer? Seriam “leituras de verão” livros cuja narrativa se passa em um verão (imagino o leitor que encare “leitura de verão” como “literatura leve” topando com Rastros do Verão, do João Gilberto Noll, e tendo um choque existencial)?
Como eu sempre pedia uma definição e ninguém me dava uma satisfatória, eu meio que simplesmente indicava livros que eu achava que mais gente devia ler, independente de ser “denso” ou “leve” ou coisa parecida – todos existentes, todos lidos por mim. Deixo aqui este comentário mais para que vocês pensem em que tipo de conceito foi usado na próxima inevitável lista de “leituras de verão” que aparecer na sua frente e para que você saiba que muitas vezes a lista provavelmente foi feita do mesmo modo como eu contei que fazia a minha: tirada da cabeça de um, dois, não muitos mais dedicados à tarefa. Claro, já vi listas do tipo em que, pela sinopse, ficava claro que o autor da lista não havia lido o livro, mas infelizmente não estamos mais nessa fase da discussão, quando agora jornais importantes são capazes não apenas de publicar uma lista de livros que ninguém envolvido na edição da página leu, mas que ninguém sequer escreveu ainda (uso esse “ainda” porque torço muito para que algum dos escritores de verdade mencionados como autores de obras fictícias inventadas pela IA – como Isabel Allende, Andy Weir ou Percival Everett – pegue o plot e o título e realmente escreva uma obra com base naquilo).
Listas e engajamento
Listas são “produtos” fáceis e aparentemente sob medida para o jornalismo contemporâneo, em que os veículos tradicionais disputam espaço com YouTubers e TikTokers no mercado da atenção. Elas se tornaram muito populares na imprensa após a disseminação da internet. Após? Mas todo veículo já fazia listas antes. Sim, fazia, mas o que tornou a lista um tipo de texto fácil de produzir e bom de pescar engajamento após a ascensão das redes foi justamente a facilidade com que agora jornalistas podem pesquisar para montá-las. Claro, acho que na área da literatura isso é mais frequente, mas quando listas se tornaram o padrão de um jornalismo bagaceiro como o da praga digital Buzzfeed, imagino que muitas daquelas listas de cinema eram de fato tiradas da cabeça de quem fez o texto, o maior indício disso o fato de que quase nunca havia filmes anteriores aos anos 1980.
O jornalismo, principalmente aquele dedicado à divulgação de notícias, é um campo no qual se vende a ideia de precisão, especialização e criatividade, mas que costuma esconder o quanto suas reais práticas facilitam não a originalidade, mas processos repetitivos para economia de tempo. Logo, sim, jornalistas muitas vezes apelam para qualquer recurso que economize tempo numa sequência cada vez maior de tarefas inglórias dentro de uma redação (seja ela de veículo tradicional, seja de portal de internet, onde a pressão por publicação e rolagem do “feed” é ainda maior). Assim, quando começaram as notícias da Inteligência Artificial, achei que não demoraria muito para que alguma coisa como essa acontecesse. Mas acho que há coisas mais proveitosas a se pensar em vez de pesar a mão em cima do suposto culpado Marco Buscaglia – morri de rir ao ler esse nome, porque ele me remete ao chatíssimo Leo Buscaglia, refugo intelectual dos anos 1990, época em que sua obra era muito lida e comentada mesmo sendo uma espécie mais sofisticada de picaretagem como a apresentada pelos coaches e autores de autoajuda contemporâneos.
Alucinações
Voltando: a IA, oferecendo a possibilidade de poupar tempo e apresentar um produto de potencial engajamento, claramente seria usada. Mas o que vem sendo discutido apenas agora, que o uso dessas ferramentas se tornou mais amplo, é que as Inteligências Artificiais são programadas para não deixar perguntas sem respostas. Talvez lhes falte também algum entendimento ético de que, se você não sabe a informação verdadeira, seria errado inventar uma resposta fictícia, mas o fato é que isso acontece direto, num processo chamado Alucinação. A Inteligência Artificial foi treinada para reunir informações em instantes e produzir um sumário, mas quando faltam dados, ela simplesmente recombina outras informações e usa a probabilidade estatística para preencher as lacunas. Pode funcionar em alguns tópicos, mas em coisas muito específicas do mundo criativo, como se vê, a invenção fica mais clara. Este mês mesmo, esta matéria listava vários casos em que Ias com tecnologia cada vez mais avançada simplesmente alucinaram e apresentaram informações inverídicas como resposta a uma consulta:
Esse, para mim, é o primeiro indício de que a máquina possui real inteligência: o jornal queria publicar algo que provocasse leitura e uma resposta em termos de engajamento, mas não queria pagar ninguém para fazer, então comprou um pacote pronto de uma agência que havia repassado a tarefa a um jornalista que também claramente não queria fazê-la. Aí pediu ajuda à IA. Que também, em vez da pesquisa e da apuração que dão trabalho, preferiu lançar uns nomes a esmo e enrolar. Provando que qualquer ser, orgânico ou não, que desenvolva real inteligência não vai querer trabalhar, se puder…
Cânone
Ah, sim, já ia esquecendo. Teve a lista da Folha. Foram ouvidos cem especialistas que apresentaram os melhores livros publicados a partir do ano 2000. A lista, felizmente apenas com livros publicados de verdade, e não sonhados no cérebro elétrico de uma máquina, foi então publicada, gerou sua cota de polêmicas, de elogios e críticas. Depois, perguntaram à professora e crítica Walnice Nogueira o que ela achava e ela escreveu um dos textos mais confusos e de má vontade que me lembro de ter lido recentemente. Ela primeiro reconhece uma coisa que, a meu ver, é um fator positivo na lista: a temática negra parece hoje muito mais em evidência nos autores citados. Depois, apresenta duas objeções que eu achei disparatadas. Diz que essa temática parece ter se tornado hegemônica em detrimento de outras quase ausentes, como a feminina (numa lista com livros de Angelica Freitas e Elvira Vigna), a indígena (sendo que a lista, claramente sobre livros ficcionais, abre espaço para um livro de Davi Kopenawa, além de ter Micheliny Verunschk e até, a seu modo, Nove Noites, de Bernardo Carvalho), a LGBT (quando há Amora, de Natália Borges Polesso).
Depois, lamenta como apenas uma acadêmica da USP seria capaz de que a lista parecia ter livros legíveis demais, e que a forma estava em segundo plano em comparação com “o conteúdo” – imagino que a escolha dessa palavra específica não seja gratuita, já que não é à trama ou ao fio narrativo que ela se refere, mas ao “conteúdo” no seu sentido mercadológico como popularizado pela moderna economia digital (mais aqui). Curiosamente, a própria maneira como a respeitável crítica define “forma” parece um tanto enviesada, provavelmente pensando nos “anseios de vanguarda” aparentados com o modernismo paulista (ele mesmo já velho de cem anos) e expressos em uma linguagem que mais se assemelha a um jogo de armar ou a um enigma críptico ao estilo Joyceano – ou Oswaldiano, se preferirem). “Forma”, essa palavra, não é apenas isso. É também montagem e recorte, e nesse sentido há algumas obras bem interessantes na lista. Também acho bem estranho que, em um momento em que, apontam as pesquisas, quase ninguém mais lê no Brasil, tenhamos uma queixa tão sentida de que os livros considerados os melhores da última quadra do século sejam aqueles que, bem, os leitores leem. Mas não vou me estender demais, porque bem ou mal estou falando de um texto curto de uma especialista em Guimarães Rosa com seus quase noventa anos – o que inevitavelmente imprime um tom diverso no texto, assim como a própria lista é um recorte que deixa entrever as marcas do tempo.
É uma lista diferente das dos livros de verão. Pelo seu caráter sazonal, listas como a que a IA inventou são meio que guias de consumo, sem nada que de fato transcenda. Já uma lista pesquisada entre especialistas com opiniões sobre a literatura dos últimos 25 anos se pretende uma lista certificadora, talvez como forma de reafirmar um certo prestígio intelectual do jornal como veículo num contexto de diminuição de leitores e de esgotamento dos espaços para a literatura na imprensa tradicional.
Imprensa e relevância
Isso fica claro já na forma, para mim, meio ignorante, como foi titulado o outro texto que saiu junto da publicação da lista, da colunista e também acadêmica Bianca Santana. O título diz que a lista “reconfigura cânone mais plural”, quando o texto de Bianca não diz isso, porque não será uma lista de jornal a responsável por “reconfigurar” cânone algum, isso é o efeito gradual, paralelo e simultâneo de várias instâncias de legitimação, da estante da livraria até os trabalhos acadêmicos, das políticas editoriais ao novo panorama de circulação de informações produzido pela internet. O que a autora diz, textualmente, é que a lista evidencia uma reconfiguração do cânone que já vem ocorrendo e que não precisa da lista para isso – e pego tanto neste ponto porque, como já comentei com vocês, sei como as coisas funcionam nos bastidores de uma redação, e estou chutando que o responsável pelo título seja alguém do jornal, e não a autora.
Bom, abriram-se com essa lista várias discussões que ainda merecem apreciação aprofundada. Será que apenas livros de grandes editoras seriam os “melhores” livros de uma época em que se publica tanto ou, mesmo entre supostos especialistas, termina que esses acabam sendo os livros que de fato são mais lidos e mais votados? E se é assim, o que torna essa lista tão diferente assim de uma relação de best-sellers, apenas com mais grife intelectual? A presença maior de nomes antes ignorados devido aos frutos de uma longa luta social é indício de que o cânone de fato está pronto para mudar ou mudou porque estamos agora com um Zeitgeist mais favorável e que pode ser revertido em caso de eventual retrocesso social?
São questões que vi na bolha das minhas redes, e não sou qualificado para respondê-las assim num único texto de poucas linhas (embora para vocês talvez não sejam tão poucas). Talvez eu precisasse publicar vários textos sobre isso para arranhar a superfície, mas duvido muito que tivesse muita gente disposta a ler algo assim neste formato. Há livros que eu não teria colocado na minha lista? Claro que sim, toda lista é assim, eu não sei se há algum pacto de broderagem ainda válido na crítica do centro do país para que uma excrescência como Pornopopeia esteja lá, por exemplo. Mas o que me chamou a atenção foi essa já mencionada ânsia do jornal para ser novamente uma instância de legitimação, pautando o debate (o que até certo ponto funcionou, dada a repercussão da lista). Mas, como falamos ao comentar a outra lista, a dos “livros fakes”, listas de modo geral são a forma mais fácil de um veículo provocar o tal “engajamento” tão cobrado hoje, porque elas são um recorte que praticamente implora contestação, implora uma crítica em tom inflamado. Logo, sim, listas não se tornaram um dos formatos favoritos do jornalismo na era digital por nada.
O que me deixa sempre pensando num paradoxo inescapável do jornalismo muito antes da mídia digital: os impulsos de um veículo de massa também pautam a mais bem-intencionada das produções jornalísticas. Se você está propondo um debate com a forma mais barata do click-bait, qual debate isso provocará? E o jornal está interessado nesse debate ou apenas no inevitável engajamento para “bombar”? Nesse sentido, a lista fake e a lista real, por incrível que pareça, caem na mesma armadilha estrutural da forma como se estrutura a propagação da informação na rede…
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Foto da Capa: Depositphotos / BiancoBlue