Em 1995, Kevin Costner estrelava o filme Waterworld. Num próximo milênio, a Terra praticamente não teria mais áreas sólidas após as águas do derretimento polar terem invadido todos os continentes. O ator é um ser mutante, que consegue respirar embaixo da água, num tempo dominado por gangues. À época, a produção pós-apocalíptica caríssima fracassou nas bilheterias. Hoje, está sendo revisitado e transformado num clássico cult.
Corta. 2024. A tragédia que inundou um 90% de um estado brasileiro em 2024 não é um fato isolado, como explicou Marco Moraes, no seu artigo dessa semana. Ela está conectada com o sistema de clima brasileiro, latino-americano e mundial. Não estamos sós, se isso serve para algum consolo.
Portanto, não adianta os moradores do Rio Grande do Sul pensarem em fugir para outro lugar, o pior do clima vai alcançá-los de uma forma ou de outra. O que precisamos garantir é que o sofrimento de tanta gente de ver suas casas destruídas, memórias apagadas, identidade arrancada, projetos dissolvidos sirva para alguma coisa, afinal.
Não nos enganemos, o nosso sistema político foi feito para funcionar sob pressão. Quem tem mais capacidade de pressionar, leva. É a ciência política que explica. Então, esperar que o estado ou políticos façam algo de livre e espontânea vontade é crer em coelhinho da Páscoa.
O enfrentamento da crise climática, que inclui preparar cidades para inundações, adaptar a agricultura às mudanças e tantas outras iniciativas necessárias, só será efetiva na proporção que cada um de nós transformá-la numa pauta urgente, numa questão de vida e morte, o que hoje não é mais força de expressão, é uma redundância.
O ciclo natural nos mostra que hoje não somos os mesmos que fomos ontem. Mas as tragédias, em particular, têm a capacidade de criar pontos de inflexão, espécie de cicatrizes na alma, aceleradoras de transformações, para o bem ou para o mal. Talvez demoremos um pouco mais para nos adaptar como mutantes, para aprender a respirar na água. Mas elas, as águas, já estão aí, entrando pelas nossas portas e janelas da vida. E as gangues também. Quem sabe, hoje, nesse exatamente momento em que você lê este texto, estejamos entrando no futuro. E nada será como antes, amanhã, como cantou Milton num passado longínquo.
Nada será como antes, amanhã
(Milton Nascimento e Ronaldo Bastos)
Eu já estou com o pé na estrada
Qualquer dia a gente se vê
Sei que nada será como antes, amanhã
Que notícias me dão dos amigos?
Que notícias me dão de você?
Alvoroço em meu coração
Amanhã ou depois de amanhã
Resistindo na boca da noite um gosto de sol
Num domingo qualquer, qualquer hora
Ventania em qualquer direção
Sei que nada será como antes amanhã
Foto da Capa: Divulgação
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