O reacionarismo é uma visão de mundo burra e atrasada, sabemos todos. Na atual onda de crescimento da extrema direita, vimos o quanto parte dos integrantes desse “novo movimento” pareceu inclinado a resgatar, em tom de farsa brega, tropos já bem desgastados da militância de esquerda: conspiração internacional do “grande capital” movida por “interesses” e contrária à “soberania nacional” deixou de ser discurso do Brizola nos anos 1980 para ir parar na boca dos bolsominions em 2022. A sanha danosa da “corporação big pharma dedicada a lesar o povo em nome do lucro com seus venenos de laboratório” deixou de ser papo daquele seu colega de quarto hippie maconheiro lesado dos anos 1990 para ser discurso oficial de senador bolsonarista no Congresso hoje. “Não passarão” deixou de ser bordão antifascista para ser entoado por golpistas mambembes queimando pneus nas estradas da serra gaúcha.
Mas tem uma coisa que, talvez por questões da natureza inescapável de sua ideologia, a “nova direita” não vai copiar da esquerda: sua crítica constante à ação da polícia. Basta qualquer um levantar a mão para apontar os casos cada vez mais flagrantes de abuso policial em escalada nos últimos anos e aparece um bozoloide qualquer com a língua ainda preta de lamber botas para bradar “então quando for assaltado, não chama a polícia”. Ou a sua versão mais pop-moderninha: “então da próxima vez que te assaltarem, chama o Batman” (aliás, está aí outro hábito meio cretino da militância de esquerda que a “nova direita” copiou sem freios, a ideia de se expressar por slogans mesmo quando você não está em uma multidão, mas falando sozinho nas redes sociais).
Discurso vazio
Acho essas duas frases bastante reveladoras da vacuidade do discurso dessa “nova direita” quando analisado com um mínimo de atenção. É o que vou, para prejuízo da minha saúde mental, fazer agora, aliás. (e dedicar atenção a esse tipo de discurso é o tipo da coisa que dá problema de fígado, eu devia cobrar insalubridade, mas isso fica pra outra hora).
Esse exemplo, como a maioria dos slogans que se repete de modo acrítico, é extremamente burro. É burro porque tenta impor uma falsa dualidade entre aceitar tudo o que a polícia faz ou não se beneficiar de seus serviços – uma falácia que ignora o fato de que a polícia é um serviço público, e, portanto, está aberto a críticas do público a quem serve especialmente quando sua atuação na defesa da lei se dá por meios extralegais. A paranoia da extrema direita com a “câmera corporal” de uso obrigatório por policiais de atuação ostensiva, por exemplo, é injustificada, uma vez que seu uso não compromete em nada o trabalho de um agente policial nos limites da lei, antes o comprova. Mas, em um país em que todo mundo sabe que a lei não é para todo mundo e que alguns abusos são tolerados de acordo com a “intenção” do agente, a proximidade ou não do poder e a cor da pele ou a classe social da vítima, o que temos é gente preocupada que um servidor público de carreira tenha sua atuação monitorada em benefício da coletividade.
Falácia crítica
Esse é só um dos problemas desse argumento, o fato de que ele se constrói sobre uma falácia cínica que parte de uma visão extremamente simplista de mundo: vê a crítica como ofensa pessoal, não enxerga boa intenção na manifestação crítica, equivale o uso do juízo crítico como um cancelamento dos direitos de proteção que a lei oferece. É tanta coisa errada que não me admira que esse pessoal não consiga ver, uma vez que esse slogan criado por alguém sei lá quando é só repetido por essa turma entre um perdigoto e outro sem que se dedique meio grama de massa cinzenta à interpretação real do que está sendo dito.
Vocês não precisam saber disso, mas eu sou um leitor constante de quadrinhos há bem uns 40 anos, então a parte do “Batman”, em particular, me deixa sempre admirado do quanto um slogan pode ser construído usando uma referência que claramente a pessoa não entende, não leu, não se importa. É como pilhar no meio da conversa um interlocutor mentindo que leu um livro, mas apresentando um sumário completamente errado de seu conteúdo, deixando flagrante sua impostura. O problema é que no meio de uma discussão sobre livros, o pilhado em falta ao menos tem a dignidade de sentir vergonha quando sua mentira é desmascarada. Nesse discurso do Batman, o idiota que o profere não faz sequer questão de saber do que está falando.
Vamos lá então: no mundo ficcional em que o Batman existe, a sua própria existência só se justifica porque a polícia não serve pra nada. Na Gotham City das histórias do Morcego há pelo menos cinco décadas, o poder é corrupto, sustentado por uma polícia igualmente corrupta e truculenta, contra a qual o Batman frequentemente entra em choque, a não ser pela figura rara e quixotesca do Comissário Gordon, que mesmo chegando a altos postos na carreira luta pra impor uma visão honesta a uma instituição fundamentalmente corrupta. Os personagens de Gotham City chamam o Batman porque a polícia de sua cidade não serve para nada. É o tipo do caso do slogan que confirma aquilo mesmo que gostaria de criticar por se enraizar numa profunda ignorância tanto da realidade quanto da referência. Quem manda “chamar o Batman” não só não entende qual deveria ser o papel da polícia numa democracia de verdade, mas também consegue a façanha de comprovar que também não entende nada de Batman.
Aliás, quando se fala que “a população de Gotham chama o Batman porque não adianta chamar a polícia”, a única diferença para o mundo real é que por aqui nas plagas do mundo extraliterário o Batman não existe. Comprovando que a declaração provocativa do direitista burro. Fora isso, desafio qualquer um dos 10 ou 12 leitores deste texto a me narrar alguma vez em que chamar a polícia após um assalto serviu para qualquer coisa além de lavrar o registro puramente burocrático com o qual você vai passar o dia inteiro tentando minimizar suas perdas, cancelando celular, cartão do banco, reconfigurar contas em redes sociais etc.
Só pra cartório
Como qualquer brasileiro da minha idade, já fui assaltado mais de uma vez. Uma vez na rua, uma vez no ônibus, uma vez num restaurante que ficava na Jerônimo de Ornellas (foi no meio de um encontro que se pretendia romântico e eu ainda passei pelo mico de os ladrões não levarem meu celular, de tão velho que ele era). Em todas as vezes, eu chamei a polícia não porque achava que haveria alguma espécie de solução para o caso, mas porque tinha de refazer documentos e precisava do B.O. Minha mulher, nos últimos 10 anos, já foi assaltada na rua, no ônibus e teve o apartamento em que à época morava sozinha invadido (felizmente enquanto ela não estava). Em todos os casos, também fez o registro porque precisava de um papel oficial com o qual pudesse ela própria ir atrás dos prejuízos. Muitos falam sobre a “experiência da insegurança pública”. Bom, essa é uma, compartilhada pela maioria. Ser assaltado é um problema. Dar queixa é outro, uma encheção de saco cujo resultado duvido que sirva até mesmo como estatística para o trabalho da polícia.
E como se tem visto nas movimentações golpistas que se ensaiam desde a eleição, chamar a polícia tampouco tem sido efetivo em muitos casos para desobstruir um bom número de rodovias interditadas por gente que chamaria de baderneiros os protestos feitos pelos moradores de uma comunidade sem água e luz que fizessem a mesma coisa para chamar a atenção para o problema.
Logo, eu realmente não teria problema nenhum se a frase “da próxima vez que te assaltarem não chama a polícia” fosse factível na prática. Eu preferiria muito mais ir registrar o assalto no cartório – lá pelo menos não está todo mundo armado.