Consta que a autoria da frase “Não é só Futebol” seria do jornalista Joelmir Betting (1936 – 2012), ao resumir sua relação com o Palmeiras (clube, aliás, do atualmente desaparecido presidente da República, o que não deixa de ser simbólico se a gente for parar para pensar). Digo “consta” porque não fui a fundo na pesquisa, mas o pouco que encontrei a respeito me parece suficiente para qualificar a atribuição dessa frase em particular como apócrifa, dado que ela normalmente é inserida no final de uma declaração que o jornalista de fato deu em 2007, na inauguração do estádio do clube, mas que não consta das versões oficiais, inclusive a citação que havia na parede do estádio. Mas esse não é o foco deste texto, então se alguém aí souber que a informação está errada, aceito o reparo a qualquer momento e vamos ao que interessa.
A questão é que, de autoria de Betting ou não, em algum momento ali na época em que a preparação do Brasil para a Copa dominava as manchetes, no início da década passada, os canais de TV a cabo começaram a usá-la como um “slogan” para turbinar o interesse da audiência e edulcorar a insistência de sua cobertura 24h, sete dias por semana, de um evento que, na realidade, só ocorre duas vezes por semana no âmbito local e de quatro em quatro anos no âmbito global. O slogan foi muito utilizado durante a cobertura da Copa do Mundo de 2014, e seu emprego nesse contexto não deixava de ser irônico quando uma parte considerável da população enchia as ruas gritando “Não vai ter Copa!” e, no meio desse pessoal, outra fatia do público já punha as manguinhas de fora gritando querer “estádios Padrão FIFA” – curiosamente, essa fatia específica acabaria por eleger como seu símbolo numa autodeclarada “cruzada contra a corrupção” a camiseta da Seleção Brasileira, sim, a camiseta aquela chancelada pela própria FIFA, que teria logo ali, em 2015, um pá de seus dirigentes presos por corrupção, fraude e lavagem de dinheiro, incluindo um ex-presidente recente da entidade. Daria para chamar de ironia, se houvesse como ter com a turma da amarelinha um diálogo baseado nas acepções mais difundidas das “palavras e das coisas”, e não nas suas versões muito particulares fruto de uma visão de mundo que vê (e que muitas vem de) um Brasil paralelo.
CONSEQUÊNCIA LÓGICA
“Não é só futebol” também é um desses conceitos que são usados inicialmente para uma coisa e depois passam a ser ignorados quando alguns críticos chamam atenção para seu significado mais amplo (não à toa, a frase agora desapareceu das campanhas publicitárias e só sobrevive aqui e ali como nome de podcast ou como declaração individual de um ou outro setorista deslumbrado nas redes sociais). A princípio, a acepção com que a frase se popularizou referia-se ao papel preponderante que o jogo e suas circunstâncias exercem no imaginário e na sociedade brasileira. “Não é só futebol”, nesse sentido, queria dizer que era também paixão, elemento de identidade, subcultura tribal, válvula de escape das pressões contemporâneas, tudo isso junto. Não era uma abordagem inválida, era apenas superficial e, como convém a um slogan, no fundo um emblema marqueteiro que tenta dispensar quem o usa do esforço muitas vezes cansativo do pensamento crítico.
Sim, “não é só futebol”, até a academia já reconhece isso. Talvez como um efeito da escolha do Brasil como sede da Copa, multiplicaram-se na primeira década deste século abordagens sólidas de intelectuais respeitados sobre essa onipresença da bola como signo do país. Em A Dança dos Deuses: Futebol, Cultura, Sociedade, publicado em 2007, Hilário Franco Jr, um medievalista, propõe uma leitura do futebol como metáfora para vários aspectos do Brasil: sociológico, antropológico, religioso, psicológico e até linguístico. Em Veneno Remédio: o Futebol e o Brasil, de 2008, José Miguel Wisnik, crítico, poeta, músico, tecia considerações sobre a identidade brasileira e sua relação com o futebol como esse “veneno-remédio” que resume boa parte da autoimagem do país, organizada quase sempre em termos de oposição: ou o país do futuro ou é um que não é (e nunca será) sério. E esses são só dois exemplos. Mesmo a literatura de ficção nas últimas duas décadas acordou para a onipresença do futebol como um assunto na realidade brasileira e começou a olhar para ele, com livros como O Segundo Tempo, de Michel Laub; O Último Minuto, de Marcelo Backes; O Paraíso é bem Bacana, de André Sant’Anna ou O Drible, de Sérgio Rodrigues.
INCOMPLETUDE
A questão aqui não é negar a verdade do slogan. “Não é só futebol” não é uma frase errada ou inverídica, apenas, usada nesse contexto, é tristemente incompleta, uma vez que deixa de fora sequências lógicas, como “e isso é bom?” ou “o que devemos fazer com isso?” Sim, futebol não é só futebol. A questão é que futebol volta a ser “só futebol” mais rápido do que um drible do Garrincha se a consequência lógica da declaração for exigida: “se não é só futebol, tá na hora de resolver uns problemas sérios aí”. Chega a ser estranho o quanto o espírito “Não é só futebol” é aceito para cobrir de louros como paixão popular uma alternativa de entretenimento hoje explorada sem pejo por organizações, marcas. Comércio, entregue à sanha exploratória de todo um sistema regado a “muito dinheiro, muita pressão”, para pegar uma frase emprestada do Vitor Ramil.
“Não é só futebol” se você estiver apenas usando a rodada do fim de semana como desculpa para brigar com amigos, sair na porrada com desconhecidos, ser um brucutu pleno de si gritando bêbado na avenida. Aí, “não é só futebol”. Mas, em um contexto em que o futebol parece mais resistente a reconhecer tabus e preconceitos arraigados do que a maioria de outros campos da sociedade brasileira, se o seu clube tiver uma parte da torcida ainda entoando gritos racistas depois de um século, o clube e você não têm nada a ver com isso. Se um jogador xinga outro com ofensas raciais dentro do campo, o time não deveria ser punido, é um problema lá deles. Se todo um discurso de depreciação do adversário se constrói na insinuação de que a maioria de seus torcedores é de homossexuais ou que já houve algum atleta homossexual em sua história, isso “é só a flauta do jogo, não deve ser levada tão a sério”. Se um técnico ou um jogador vem a público para afirmar o óbvio: que o racismo da sociedade também tem efeitos no futebol – como tem efeito em todo o resto, aí chovem as acusações de que o cara está forçando a barra ao “misturar futebol com política”.
Ou, em um exemplo tornado ainda mais flagrante devido à proximidade da abertura da Copa, “nada a ver misturar política com futebol” quando se aponta que esta é a segunda edição consecutiva de uma Copa do Mundo, o evento mais importante de um negócio global milionário, o do futebol profissional, que está sendo realizada em um país com política institucionalizada de criminalização da homossexualidade, perseguição de dissidentes políticos e governo que se ampara no fanatismo religioso como um dos pilares de uma política autocrática. Foi assim em 2018, quando ninguém que foi cobrir a Copa na Rússia aparentemente tinha problemas com o mesmo Putin que hoje virou um bicho-papão internacional e apenas recitava deslumbrado as maravilhas de um país com uma rica cultura (a cultura de fato é rica, mas o foco apenas nela servia para escamotear a criminalização da homossexualidade no país, por exemplo). Agora, as “caravanas da bola” dos principais veículos nacionais já estão a caminho do Catar, e a imprensa brasileira foi praticamente forçada a endereçar a homofobia institucionalizada no país porque, em um exemplo de o quanto esse tipo de pensamento é escancarado, o ex-jogador e embaixador simbólico da própria Copa, Khalid Salman declarou placidamente, em entrevista, que a homossexualidade, além de “pecado”, era uma “doença mental”. Na Rússia também, a questão só ganhou algum destaque depois que a atleta olímpica Elena Isinbaeva declarou quase a mesma coisa, mas com outras palavras.
VERDADE INSTUTICIONAL
Sendo este o Brasil, talvez o fã médio de futebol nem lembre de se indignar, já que, tirando o background religioso, que é um pouco disfarçado, mas ainda assim presente, o pensamento ecoa tristemente em boa parte das torcidas de futebol, para quem, de fato, sem ironia ou atenuante, “futebol não é coisa pra veado”. Ainda nos anos 1990, o “mitológico” Zagallo declarava numa entrevista à revista Bundas que “nunca ouviu falar” de jogador gay em seu tempo. E que, tinha plena certeza de que, “gay não se cria” no universo do futebol. Houve algumas manifestações indignadas pontuais, mas Zagallo foi mais unanimemente desaprovado por ter gritado “Vão ter que me engolir” do que por declarar uma atrocidade dessas.
E o pior é que Zagallo não “mentiu”, a bem dizer, ele expressou uma realidade institucional do futebol, na qual a invisibilidade dos homossexuais continua sendo a tônica. A camiseta “24” é anátema na maioria dos clubes. O caso mais emblemático envolvendo homossexualidade e futebol no Brasil ocorreu há meros 15 anos quando um jogador do São Paulo foi “tirado do armário” por uma declaração dada um dirigente do Palmeiras (olha ele aí de novo) em um desses programas repetitivos de debates esportivos. A repercussão ganhou dimensões tais que o próprio jogador se manifestou publicamente negando sua homossexualidade. O mesmo fez outro jogador flagrado numa bitoca com um amigo numa balada, que depois foi para o Twitter pagar de machão homofóbico para “não haver suspeita” sobre sua orientação.
São casos em que seria fácil apontar a “covardia” dos atletas se sua negação for mentirosa. Alguns o fizeram, aliás, na época dos dois casos. Mas ao se fazer isso, convenientemente se deixa de lado o papel institucional que o mundo da bola, principalmente sua organização burocrática, tem nesse tipo de discriminação. Um dos raros jogadores que assumiram publicamente a sua homossexualidade, o belga Thomas Meunier já declarou que a mentalidade burra e arcaica que domina o futebol hoje o faria desaconselhar que outros seguissem seu exemplo. As entidades do esporte se escondem numa neutralidade em que os “valores” que realmente importam são os expressos nos contratos, em euros se possível. A declaração de Meunier foi feita na mesma época em que a Hungria, outro país com política abertamente homofóbica, jogaria com a Alemanha no Allianz Arena de Munique. Devido à aprovação de um pacote de leis ainda mais draconianas contra a população LGBT+, o prefeito da cidade alemã solicitou à UEFA que iluminasse o estádio com um arco-íris, algo que a entidade recusou por ser “politicamente neutra”. Isso não foi nos anos 1990 em que um Zagalo já batendo biela desfilava sua falta de noção. Isso foi no ano passado. Aliás, é de 2018 um dos tratamentos ficcionais mais relevantes dessa questão no Brasil, a graphic novel “O Outro Lado da Bola” (foto da capa), de Alê Braga, Alvaro Campos e Jean Diaz. “Não é só futebol”, é também a indiferença voluntária ou mesmo a apreciação tácita a que pessoas sejam criminalizadas pelo que são.
No caso dos atletas negros, a questão do racismo é abordada por clubes e entidades como um fenômeno de arestas desconexas, sem a tentativa de um olhar crítico. O lugar dos negros no esporte é um tanto diverso, principalmente no Brasil. Ao contrário da invisibilidade radical dos homossexuais, a presença negra é parte da própria mitologia do esporte, e o lugar do “atleta” é um dos poucos em que a sociedade brasileira conservadora aceita para os negros de modo geral. Desde que, é claro, o “atleta” seja uma máquina de proezas físicas, e nunca um cidadão com um olhar político (de esquerda, principalmente), como o exemplo recente de Roger e sua execração pública por parte da torcida em que já foi ídolo demonstra. Visto em toda parte, o negro no futebol ainda luta para ser ouvido por si só, e não parte das teses explicativas de sua presença no futebol nacional.
Mas o futebol é uma indústria bilionária em que cifras monstruosas voam em altura muito acima do mais alto dos holofotes. Lá na estratosfera noturna para o qual a luz dos refletores não aponta, considerações como essa não são levadas em conta.
Porque aí, claro, não é só futebol.