Não, não é apenas um pesadelo. É o que é sem panos quentes. Na dura realidade de um Estado mergulhado na água e na lama, que vive um dos maiores desastres ambientais do país, e penso que do mundo, estamos em alerta. Acordados e de olhos arregalados diante do que há para fazer, de mãos dadas para a nossa reconstrução interna e externa. Perdemos o sono e está difícil sonhar. O número de mortes, desaparecidos e desabrigados aumenta dia a dia. O barulho da chuva atordoa. Há um sentimento devastador no ar. Um desânimo. Um cansaço. Um desencanto. Uma embriaguez que entorpece os sentidos e desequilibra corpo e a alma. Um vazio. Um medo. Uma tristeza. Um esperar pelo que se foi. E não vai voltar. Precisamos de união e cooperação. Não há outro caminho. A esperança está na solidariedade!
A pergunta que faço é: Será que vamos aprender com esta tragédia? Tirar a máscara negacionista e ouvir a voz do meio ambiente que grita faz tempo?
Paralelamente à tragédia, nosso cotidiano é tumultuado por atitudes torpes, irresponsáveis, mesquinhas, que ofendem e alimentam o confronto, sem o mínimo resquício de humanidade e respeito. Os insensatos e inescrupulosos não dão trégua. Não basta para eles o desespero de milhares de pessoas que acordam todas as manhãs sem ver o horizonte, sem saber como retomar a vida. Agem sorrateiramente. O que querem é espalhar notícias falsas, disseminar a violência, negar o que está sendo feito cotidianamente pela dignidade de quem perdeu tudo e não sabe por onde recomeçar. Que criaturas são essas que não se abalam com tamanha tragédia e seguem brincando de fazer e desfazer pelas redes sociais e outros meios, ignorando a dor de milhares de pessoas? São criaturas nefastas que querem o caminho da barbárie e do ódio ao acirrar o que há de mais desumano nos humanos. Precisamos mesmo nos defender uns dos outros? Andar como se nossas vidas fossem feitas de inimigos?
O que precisamos é andar de olhos bem abertos e críticos para não cair nas ciladas de uma política oportunista que já está zumbindo, ou zombando, por aí.
Estamos sem freios? No que estamos nos transformando? O que queremos? Por que queremos? Para onde vamos? Qual o sentido do nosso andar? Este andar que tropeça em uma população triste, frágil, acolhida em abrigos. Olhares e corpos cansados, perdidos, enlouquecidos, que deixaram suas casas, suas cidades, sua história, suas raízes, sem tempo para recolher uma lembrança que fosse porque a água poderia levá-los inesperadamente. Em Porto Alegre, o rio, ou o lago imenso, com um pôr do sol maravilhoso, enfureceu, transbordou suas mágoas, buscou seus leitos aterrados, inundou o centro histórico e muitos bairros. É fundamental refletir sobre esse transbordamento porque não foi sem aviso. O meio ambiente grita há muito tempo. As autoridades municipais e estaduais ouviram? Prestaram atenção na emergência desse grito? Não! Ignoraram, preocupados apenas com suas emergências privatistas. Faltou respeito com o que é público. Faltou planejamento. Faltou cuidado. Faltou manutenção.
Nesta confusão de sentimentos, o que me consola é que não perdemos o sentido humanitário, o olhar acolhedor, a atitude solidária. Sabemos que nem todos queriam deixar suas casas, o que é possível entender por mais dramático que seja. Sabemos de muitas perdas, de familiares, de vizinhos, de amigos. E sabemos também que todos precisam de uma palavra de conforto, de um gesto de carinho, de um abraço, de cuidados físicos e psicológicos, de uma nova oportunidade, de quem os estimule a elaborar tanta dor e a retomar o que foram obrigados a deixar pelo caminho no desespero.
Porto Alegre viu sua gente, seus encantos, seu patrimônio serem inundados, destruídos e levados sem piedade pelas correntezas. As “esquinas esquisitas” da capital gaúcha, cantadas na poesia de Mario Quintana, estampam uma tristeza nunca antes vista pelos meus olhos. A água pisou nos versos, apagou as rimas e transformou-se em lama. O momento, repito, é de união e de cooperação para seguirmos firmes neste resgate. Não há outro caminho. Mas é também o momento de muito cuidado para não cairmos nas ciladas de políticos oportunistas que nunca fizeram nada e agora reaparecem do nada para tirar proveito da tragédia. Definitivamente, chega da hipocrisia política!
Fico, então, com o “Poeminha do Contra”, de Mario Quintana – “Todos esses que aí estão / Atravancando meu caminho, / Eles passarão… / Eu passarinho!”
“Que podemos fazer agora? Primeiro salvar as vítimas e cuidar delas e depois reconstruir a cidade. Mas e depois? Nas próximas eleições, eleger candidatos que deem prioridade a programas que envolvam proteção à natureza local, a redução do poder do capital imobiliário, a ações educativas de combate a catástrofes e amplo apoio à defesa das classes populares. Estamos em guerra e nela, a economia de um lugar se volta para ela. Mas uma guerra também é preparação e nossas futuras decisões, de um Plano Diretor a um Museu dos Acidentes poderiam amenizar a dor de tragédias futuras” – Trecho de artigo de Jorge Barcellos (doutor em Educação, autor de “O êxtase neoliberal – Clube dos autores), publicado no Sul21 em 20 de maio de 2024, que quero deixar registrado aqui pela lucidez e porque gostei muito de ler.
Foto da Capa: Freepik IA-Generated
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