Esse é um texto sobre a capacidade de estar só. Vários psicanalistas já falaram sobre o conceito, uma aquisição psíquica importante, a apropriação e a suportabilidade de si a partir de uma vivência de alteridade que se segue após uma primeira e, por sorte, temporária simbiose, posterior identificação e na sequência, se tudo correr bem, a aquisição de um eu consistente o suficiente para saber-se e tolerar-se só.
Conheci Tamara Klink (foto da capa) quando ela participou da Flip (Festa Literária de Paraty) em 2022, em uma mesa ao lado de Nastassja Martin, autora de um livro sobre o qual me refiro muito, chamado “escute as feras”. Eu assisti à mesa em função da escritora, mas tive a grata surpresa de conhecer uma jovem que até então para mim era apenas a filha do famoso navegador Amyr Klink.
Aos 24 anos, Tamara foi a mais jovem brasileira a cruzar sozinha o Oceano Atlântico, navegando sozinha da França ao Brasil. Depois de assistir a essa mesa da Flip, onde conheci uma menina tão apropriada da própria solidão e das profundezas de uma navegação interna e externa, comecei a segui-la no Instagram (@tamaraklink) e desde então me tornei fã das postagens despretensiosamente profundas e reflexivas que ela faz. Nesse momento, ela está na Groenlândia e traz questionamentos sobre seus processos de navegação, solidão, relações e a percepção da natureza e do universo que a rodeia. Universo que ela convida-nos a conhecer de maneira muito singela. E, vejam bem, não é preciso navegar por mares ou continentes para entender de que universo ela está falando. A verdade é que navegamos em águas rasas demais quando se trata de nós mesmos. Ocupamo-nos de nossos afazeres, de nossas tarefas mundanas, de nossas ambições frívolas e esquecemos de fato do universo para além de nossos próprios umbigos.
O umbigo de Tamara chama-se sardinha, nome de seu barco. Em um dos episódios de seu canal do Youtube, Tamara fala sobre a sua relação de codependência com o barco. Ele não está a serviço dela. Ela também precisa dele e por isso precisa cuidar dele. Ambos se protegem e se cuidam. Como deveríamos fazer em nossas pretensas terras firmes. Eu cada vez mais navego com Tamara e penso que nenhuma terra é firme suficiente quando pretendemos de fato navegar a vida com inteireza. Ela fala muito sobre a solidão, sobre onde de fato fica o lar de quem é itinerante. “O porto seguro fica onde estão os amigos”, ela diz.
“As chances não se repetem. E tenho certeza que nas cidades, nas pessoas, em todo lugar do mundo, também é assim, quando a gente está atento para perceber.
No mar, não importa quantos livros você publicou, quantas pessoas te seguem no Instagram, se você é nova ou velha, se é homem ou mulher, pequena ou forte, o que você já fez ou deixou de fazer… O mar será sempre indiferente a mim, à minha passagem, ao meu barco. Isso para uma mulher é muito libertador.”
“O nariz apontado para o desejo não tem atalho (…) As palavras criam planetas”, fala a menina que há meses não convive com outro ser humano em seu barco, mas que ainda assim se comunica tão melhor do que muitas pessoas por aí, cercadas de gente ao seu redor, e não sabem usar as palavras que tem ao seu dispor. Talvez porque não tenham. Ter palavras não é do dicionário. Vocabulário é coisa fina, coisa sofisticada, mas simples, porque passa por se embrenhar numa existência corajosa de se indagar.
“A minha língua é o meu lar, na minha língua reconheço meu tom de voz”. Pois siga falando a nossa língua, Tamara. Não somente a portuguesa, mas a língua de uma existência precisa e preciosa, uma existência que saiba a importância de tomar conta de si, e que estar só não é estar sem ninguém. Meu desejo é estar no mesmo barco que o seu, é criar a minha sardinha, meu pequeno universo particular de onde eu possa entender cada vez mais o universo complexo que me cerca. O oceano, bem sei não é para todos. Ou até é, mas nem todos sabem os verdadeiros equipamentos para saber navegá-lo. No início do texto falei sobre a capacidade de estar só, coisa que Tamara parece já ter compreendido muito bem. Ela sabe de seu tamanho, sabe que é tudo que tem e, ao mesmo tempo, sabe que não é nada. E isso é nunca estar só.
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*Os trechos em itálico são transcrições de escritos de Tamara, extraídos de suas postagens no Instagram.
Foto da Capa: Reprodução do Facebook