Ando a pensar sobre o que escrever. Como pedi, tenho recebido sugestões. Dois temas têm se destacado: amizade e amor. Os dois, de certa forma, entrelaçados. Um pode se transformar no outro a qualquer momento. Ou nunca. E eu gosto da ideia de pensar sobre eles ou o que se confunde com eles. E digo pensar porque escrever é refletir. Pelo menos no mundo real, é. Em um centro espírita, não é bem o caso. Um amigo muito querido, preocupado com o meu jeito independente de levar a vida, uns meses antes de morrer, me enviou uma carta que ele recebera de um médium, assinada pelo meu pai. Longa. Duas folhas em que não encontrei uma única frase que dissesse algo pessoal. E o que é mais estranho, pelo menos para mim, é que o discurso não fechava em nada com a competência do meu pai para a escrita. Portanto, não acreditei na autoria. Além dos inúmeros erros de concordância nominal e verbal e de se referir a si mesmo como velho, coisa que ele nunca fez em vida, meu pai não me chamava de menina. Nem quando eu era, ela usava esse vocábulo. Na minha casa, sempre fomos os filhos. E minha mãe sempre foi uma mulher. “Quando eu conheci a Ana, ela tinha dezessete anos e era uma jovem encantadora”, ele me disse. Jovem. Sequer de adolescente ele a chamou. E por um motivo simples: meu pai, que teve de amadurecer cedo, era contra a infantilização dos adultos e se preocupava com a das mulheres.
Menina, segundo ele, era um jeito, aparentemente afetivo, de um homem colocar uma mulher em uma posição de inferioridade e de brincar de boneca com ela. De dolls, com frequência, elas eram chamadas nos filmes norte-americanos da década de 1950. É do Elia Kazan, um dos meus cineastas favoritos, o filme Boneca de Carne, Baby Doll em inglês. Nele, a protagonista, disputada por dois homens em conflito, quase sempre vestida como uma camisola de seda, dorme literalmente no berço. Um filme nauseante. Revi no ano passado, sentindo ainda mais mal-estar. Algo parecido, do ponto de vista emocional, com o que senti na primeira vez em que li o Lolita, um livro muitíssimo bem escrito em que Nabokov fala sobre a obsessão de um homem de mais de quarenta anos por uma menina de doze. Sem sombra de dúvida, um perverso, que chega a se casar com a mãe dela para poder se manter por perto e que ganha a sua chance de dominação com o atropelamento seguido de morte da esposa.
No livro A Mística Feminina, Betty Friedan aborda a questão do crescimento das mulheres, comentando sobre uma pesquisa feita por um grupo de psicólogos que acompanharam o desenvolvimento intelectual de 140 jovens, de ambos os gêneros, considerados inteligentes, e que detectaram uma queda súbita e acentuada nas curvas de QI das garotas quando elas chegavam aos 14 ou 15 anos. Queda que não tinha nada a ver com as mudanças fisiológicas. As exigências de conformidade ao que se exigia de uma mulher é que se atravessavam. Atravessamento que ainda segue. “Esse estudo mostrou que, quando começam a sentir os conflitos, as dores de crescimento da identidade, as meninas param de se desenvolver. De forma mais ou menos consciente, elas impedem o próprio avanço para desempenhar o papel feminino”. Boa mãe. Boa esposa. Boa filha. Boa nora. Boa amiga. Boa namorada. Boa colega. Boa de cama. De mesa. Vai que até de banho. Boa para tudo, desde que não ameace o protagonismo, as carreiras e os lugares sociais dos homens.
Outro dia, na fila do caixa do supermercado, lugar que detesto, mas que uso como laboratório para a construção de personagens, ouvi a conversa entre duas mulheres na faixa dos trinta anos. Uma mostrava à outra, no celular, fotografias de sua formatura na universidade e dizia frases como “olha que adolescente bonitinha que eu era”, “olha as minhas bochechas de adolescente”, convencida de que, com vinte e poucos anos, mesmo sendo juridicamente responsável por qualquer ato ilegal que pudesse ter cometido, maquiada, de salto alto, certamente com vida sexual ativa etc., ela não era ainda uma mulher. O que será que pensam que é uma mulher essas mulheres que gostam de ser chamadas de meninas? Volta e meia me pergunto. Não veem o quanto essa condição ameaça, de verdade, as menores de idade, colocando nelas uma erotização indevida? Meninas não fazem sexo. Ponto final sobre o assunto. Se você faz sexo e tem mais de 18 anos, caia na real de que você é uma mulher e pare de se fingir de indefesa.
Quando era criança, a coisa que eu mais queria era ser gente grande. E luto para me manter nessa posição que me iguala a todos os outros adultos e adultas da Terra, um planeta cheio de abusadores empenhados em fragilizar o ego, a autoestima e mesmo os corpos das mulheres e que não hesitam em usar as famosas vestes de cordeiros em sua doutrinação, como em um outro filme, bem mais contemporâneo que o Boneca de Carne, mas também do século passado, em que a protagonista, uma atriz de sucesso mundial, querendo reconquistar um homem a quem ela perdeu por seu mau temperamento, pede a ele que lembre que quem está ali parada pedindo para ser amada é apenas uma menina parada diante de um menino. Um Lugar Chamado Notting Hill é o título. Não lembro quem é o diretor. Freud explica. Talvez porque essa cena me embrulha o estômago. Por que uma mulher não pode pedir a um homem que a ame e vice-versa? Por que o amor tem de ser associado à juventude? Por que esse etarismo disfarçado de pureza, inocência, inexperiência? A quem interessa tudo isso? A mim, em nada. Dizem que é porque não acredito em amor. Talvez seja exatamente pelo contrário. Amor não é para os imaturos ou para os fracos, como no filme Onde os Fracos Não Têm Vez, dirigido pelos irmãos Coen, em que um psicopata dá cabo das pessoas ao mesmo tempo em que uma crítica à desvalorização do passado passeia pela narrativa. Um bom assunto para a gente voltar a conversar. Então, voltaremos.
Todos os textos de Helena Terra estão AQUI.
Foto da Capa: Cena do filme Boneca de Carne, Baby Doll / Divulgação