Conseguir ler nas entrelinhas ou enxergar as estratégias de narrativas é uma competência que venho desenvolvendo desde que me entendo por gente. Primeiro, de maneira intuitiva, com as observações e orientações do meu pai, que me ensinou desde menina a não acreditar em tudo o que me falassem sem questionar (perdão aos meu professores todos, aliás), depois, com a técnica aprendida na universidade, na prática profissional e nas tantas leituras sobre o assunto.
Um dos testes que faço comigo mesma é percorrer os sites de agências de checagem de fatos – como as indispensáveis Projeto Comprova e Agência Lupa – e ver se eu cheguei a ser ou poderia ter sido enganada por algum dos conteúdos desmentidos (integral ou parcialmente) por elas. Até hoje, tive 100% de aproveitamento. Na tradução, também creio que poucas vezes tenha cometido barbaridades com falsos cognatos ou traduzido expressões idiomáticas literalmente. Meu mantra para evitar essas roubadas é sempre ter em mente que se algo parece errado ou esquisito, são grandes as chances de que de fato seja.
Quer dizer que nunca sou enganada, que jamais caio em lorotas ou me deixo levar por histórias mal contadas? Claro que não! Tenho meus vieses e certamente mais facilidade de acreditar no que me causa maior identificação. Tenho também preguiça, o que me deixa tentada a, ao menos às vezes, comprar a primeira versão e pronto. Mas tomo o cuidado de não botar nem um dedinho no fogo por nada que eu não tenha vivido ou presenciado pessoalmente. E ainda assim. A memória e a capacidade cognitiva são traiçoeiras. Não foram poucas as vezes em que precisei me desdizer ou me retratar de algo que eu havia ouvido, visto ou interpretado mal.
Com o passar dos anos, o vício profissional de ter um olhar permanentemente desconfiado sobre o mundo e suas coisas transbordou para a vida pessoal. Hoje, já não consigo mais comprar qualquer versão sem, antes, escarafunchar atrás de uma inconsistência, uma falsidade, uma generalização, um equívoco bem intencionado, enfim. Vale para a notícia sobre corrupção no mais alto nível de poder, vale para a informação de que um casal de amigos se separou. É cansativo. É chato. Me torna chata. Mas não consigo agir diferente. E admito invejar um pouco quem consegue.
A ideia aqui não é mostrar “como eu sou inteligente e não me deixo enganar facilmente” (mentira, um pouco é, sim 😀), mas questionar um fenômeno que me causa profundo estranhamento (e até irritação, preciso confessar): o de profissionais de comunicação (alguns supostamente bastante escolados) que se deixam dominar por narrativas que eles próprios sabem como são feitas, por quem são feitas e com que intuito.
São personagens curiosos. Tem o publicitário que se encanta com produtos por anúncios que ele sabe como e com que intuito foram feitos, o marqueteiro político que acredita piamente em conversa de político que promete fazer o que o cargo para o qual está concorrendo não lhe permite fazer e o jornalista que compra brigas por histórias que ele teria visto serem fantasiosas se tivesse parado um segundo para fazer o básico da sua profissão: avaliar os diferentes lados da questão. São tipo o dono da fábrica de salsicha que come a salsicha achando que é algo saudável. Come, meu amigo, mas não tapa o sol com a peneira!
Deixando claro: não acredito em isenção ou imparcialidade totais. Mas gosto de acreditar que, em se tendo o conhecimento, podemos usá-lo para fazermos escolhas racionais de crença, ideologia e gostos de consumo. E encararmos a realidade com alguma alteridade. Eu também choro com propaganda do Zaffari. Eu faço campanha por candidato em cujo projeto acredito (e aí já quebrei a cara lindamente, antes que algum engraçadinho venha me lembrar do que sou lembrada todos os dias pela realidade da minha cidade). Eu me emociono com discursos políticos bem feitos (coisa bem boa me sentir representada por alguém como Marina Silva, por exemplo). O problema não é exatamente comunicadores se deixarem envolver pelas técnicas e estratégias de comunicação, mas engolirem as histórias acriticamente. E, mais grave, como formadores de opinião, às vezes até com alguma credibilidade, saírem reproduzindo ficções como fatos.