Em meio às comemorações da Semana Farroupilha, proponho uma reflexão crítica sobre alguns de nossos hábitos da nossa cultura. O primeiro ponto que merece questionamento é o fato de reverenciarmos uma guerra perdida, a Revolução Farroupilha, que, em sua essência, buscava beneficiar uma elite de estancieiros. Como em todos os conflitos bélicos, essa guerra também custou a vida de muita gente inocente. Essa questão nos leva a pensar sobre a escolha da data para o Dia do Gaúcho. No entanto, quem sou eu para propor tal mudança diante de uma tradição tão consolidada?
Outros fatores que merecem consideração dizem respeito ao tradicionalismo que, por vezes, conserva uma visão estática do que significa ser gaúcho, sem espaços para discussões ou para a inclusão de novas vozes e perspectivas. O papel da mulher, dos negros e dos indígenas, por exemplo, muitas vezes é marginalizado ou reduzido dentro dessa narrativa predominante, quando, na verdade, suas histórias e contribuições são essenciais para entender a formação cultural do Rio Grande do Sul.
Recentemente, li o livro Gauchismo Líquido, da doutora em etnomusicologia e compositora Clarissa Ferreira, publicado em 2021 pela Editora Coragem, que aborda muitas das questões que me incomodam. Na obra, que reúne textos publicados em um blog homônimo, Clarissa fala do machismo e misoginia em algumas letras de músicas, da elitização do Movimento Tradicionalista, da homofobia nos ambientes culturais, entre outras situações. Inspirado no conceito do sociólogo Zygmunt Bauman, a autora contraria as ideias impostas pela tradição, afirmando que, na contemporaneidade, nada é feito para durar. Dessa forma, as normas estabelecidas pelo tradicionalismo podem e devem ser modificadas.
Clarissa contesta o papel da mulher na cultura gaúcha. No texto Nem chinoca, nem flor, nem morocha: sobre o machismo na música gaúcha, a pesquisadora condena a construção da representação feminina e como essa compreensão vem sendo repetida pelo tradicionalismo até hoje. A mulher, citada em muitas composições campeiras e na tchê music, é frequentemente reduzida a um objeto de uso e consumo, como se fosse apenas uma extensão da propriedade do homem gaúcho. Além de sua origem etimológica, o termo “prenda” reflete a visão machista do homem sobre a mulher, explica a autora ao associar o tratamento dado às mulheres a uma coisificação simbólica e representativa. Prenda significa algo que pertence a alguém, um presente, um prêmio merecido, mas nem todas as mulheres gaúchas querem receber esse título. Nós, gaúchas, somos protagonistas de nossas histórias e não desejamos viver à sombra de ninguém.
O tradicionalismo mostra-se retrógrado ao proibir musicistas de participarem de festivais sob o argumento do risco de assédio. Segundo Clarissa, isso se justifica pelo desinteresse masculino em relação às vozes femininas, já que a cultura gaúcha foi moldada predominantemente a partir de perspectivas dos homens.
A mesma resistência à inclusão se manifesta em relação aos homossexuais. O mito da macheza, enraizado no tradicionalismo, não apenas legitima a homofobia e reforça a heteronormatividade, como também cria um ambiente hostil para qualquer expressão de diversidade sexual. Esse culto à virilidade masculina acaba silenciando e excluindo indivíduos que não se enquadram no padrão estabelecido, alimentando preconceitos e provocando conflitos dentro do movimento.
Essa exclusão é ainda mais evidente nos espaços tradicionalistas, onde a identidade do gaúcho é frequentemente associada a uma figura heterossexual e dominante. Isso reforça estereótipos que limitam a participação de pessoas LGBTQIA+, ao mesmo tempo em que invisibiliza suas contribuições para a cultura. A falta de abertura para essa diversidade de vozes perpetua um ciclo de discriminação, mantendo o movimento fechado em torno de concepções ultrapassadas de gênero e sexualidade. Afinal, a verdadeira força da cultura reside na sua capacidade de evoluir e abraçar a pluralidade de suas vozes.
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