Vou te contar tudo que aprendi sobre o amor depois de muitas desventuras, encontros e desencontros. vou te contar como é delicado entender da própria ferida e saber o que dela fere o outro sem que nenhuma das duas partes compreenda. vou te contar tudo que aprendi sobre mim, sobre meus buracos ocultos por um amontoado de folhas secas que foram despencando de invernos rigorosos. é impressionante o que um buraco coberto pode causar ao impedir a queda. ou retarda-la. pior do que cair no buraco é ficar desviando deles, ocupando-se deles que ficam ainda mais profundos e escuros quanto menos se os conhece. esse ano eu destapei vários. vi um terreno cheio e pus-me a trazer terra e com uma pá, fui aos pouquinhos medindo a profundidade e a quantidade de areia que cada buraco requeria. tudo ainda é terra nova, remexida, recém acomodada. As chuvas, o sol e o tempo tratarão de consolida-la. o terreno certamente nunca estará totalmente liso, espero eu.
Eu estava escrevendo esse parágrafo como um potencial começo de texto para a minha crônica da semana, mas acordei essa manhã com a notícia e o vídeo de um homem jogado de uma ponte numa abordagem policial. A cena foi filmada, não que isso em tempos de pós-verdade (que pós ou quão pós?) garanta muita coisa, porque parece cada vez mais difícil que as coisas que acontecem sejam assim validadas porque, mesmo filmado, gravado, a opinião de alguém pode ser diferente. Não houve resistência por parte do abordado, nenhum movimento que pudesse denotar ameaça. O policial simplesmente o levanta pela perna e o atira ponte abaixo, como se estivesse descartando um pedaço de lixo. Um a menos? Sei que ser policial não deve ser nada fácil. O mesmo descaso com um civil e a falta de proteção e segurança que devíamos sentir por parte do Estado é dirigida aos profissionais da segurança, com a diferença de que estes supostamente se colocam em risco pela segurança do cidadão, de TODO E QUALQUER CIDADÃO, via de regra. Mas essa via nem sempre é a mais trafegada.
Pergunto-me: por que lei e violência têm sido sinônimos? Por que não conseguimos nos sentir mais protegidos? Minha filha de 10 anos ainda vê uma viatura policial e se sente protegida, ainda na ingenuidade bonita da infância, onde pensa existirem os bons e os maus, os mocinhos e os bandidos. Eu ainda tenho um resquício de sensação de segurança também, mas sei que é porque sou branca, privilegiada e uma abordagem mais violenta e ofensiva certamente teria uma repercussão bem diferente. A cena do rapaz sendo jogado da ponte não sai da minha cabeça. Onde foi que nos perdemos e a proteção virou exclusão? Freud nos alertou em idos de 1920 sobre a capacidade mortífera do ser humano, mas mesmo em tantos anos de estudos e evoluções poderíamos pensar nesses desdobramentos e na escalada da violência ao outro que me ameaça simplesmente por ser diferente (e que fique claro a ameaça narcísica a que me refiro aqui, não a “real” e física que, ainda assim, tem meios de freio, especialmente quando uma das partes tem um arsenal de força, equipamento e treinamento que o outro não).
Eu sei, existem tantas camadas nessa discussão… O sucateamento da segurança, falta de equipamentos, falta de dinheiro, desvio de verbas da segurança pública. O furo parece ser tão grande que nem mesmo toneladas de folhas secas lá do meu inocente parágrafo mais poético sobre o amor ali de cima dariam conta. Esse buraco está nos engolindo enquanto sociedade. Quando um jovem, independente da razão, é jogado de uma ponte por um representante da lei e da segurança, algo está severamente deturpado. Diante dessa realidade, à qual me falta preparo aprofundado para tratar, começo a achar que pensar sobre amor, sobre feridas emocionais e sobre descaminhos emocionais parece ser até fácil, simples e quase ingênuo. Que não nos deixemos anestesiar pela sucessão de barbáries que vêm sendo praticadas pelos órgãos “competentes”. Que não sucumbamos ao desamor, ao cansaço e à pressa da vida.
Ela, a que interessa, não tem pressa, mas é urgente.
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Foto da Capa: Reprodução de Redes Sociais