Gosto de pedalar desde que me conheço por gente. Da classuda berlineta até a atual laranja mecânica, uma modesta bike tornado. Esses pedais continuam a me levar para cima e para baixo pelas vias e não vias de Porto Alegre.
Essa semana, em menos de 5 horas, passei por 4 tentativas de assassinato. Ou será que devo normalizar as agressivas investidas de motoristas sociopatas em cima de ciclistas e mais sobre as faixas de ciclovias como práticas normais, legalizadas e absolutamente legítimas? E que fique nítido, todas as entradas e invasões das ciclovias foram em locais muito bem-sinalizados: faixas vermelhas, demarcações nítidas no chão, tartarugas e demais sinalizadores.
Não me parece ser falta de identificação visual das ciclovias, aliás das poucas ciclovias existentes em Porto Alegre — e isso já é parte da discussão política necessária de ser realizada de modo sério pelos governantes, legisladores, empresários, lobistas políticos e cidadãos. Será que as/os motoristas sofrem de falta de acuidade visual logo após receberam suas CNHs?
Também não parece ser o caso de falta de desconhecimento das regras de trânsito. O atual Código de Trânsito Brasileiro (CTB) têm 17 citações sobre o termo “preferência” de passagem e 14 citações sobre “bicicleta”. Para refrescar a memória e citar apenas 2 exemplos da legislação vigente aos motoristas (que em tese devem conhecer o CTB na íntegra para ter o “direito” de conduzir um veículo automotor e saber os limites) nos casos em que não há ciclovias — só para entendermos a gravidade de estacionar em ciclofaixas, entrar parcialmente nas ciclovias e demais violações — sobre a relação ciclistas e motoristas:
Art. 58. Nas vias urbanas e nas rurais de pista dupla, a circulação de bicicletas deverá ocorrer, quando não houver ciclovia, ciclofaixa, ou acostamento, ou quando não for possível a utilização destes, nos bordos da pista de rolamento, no mesmo sentido de circulação regulamentado para a via, com preferência sobre os veículos automotores.
[…]
Art. 201. Deixar de guardar a distância lateral de um metro e cinqüenta centímetros ao passar ou ultrapassar bicicleta: Infração — média; Penalidade — multa.
Fonte: LEI n.º 9.503/1997, Código de Trânsito Brasileiro (CTB). Disponível aqui.
Não citarei o óbvio ululante da legislação das obrigações dos motoristas em relação aos ciclistas que estão dentro das ciclovias. Será que as/os motoristas sofrem de apagão jurídico quando visualizam um/a ciclista?
Me questiono onde estão os motoristas que defendem a lei e a ordem? Aqueles que defendem a “ordem” no seu sentido legal e jurídico? O mesmo termo que os conversadores da ultradireita gabam em exaltar. Palavra-chave que está na bandeira do Brasil. Termo que está na Constituição Federal, a Carta Magna. Onde estão esses motoristas — homens e mulheres, pois as transgressões foram realizadas por ambos os tipos — que defendem a ordem? Parece que o discurso não é aderente à prática.
Por um lado, para contextualizar um pouco mais, dois casos ilustram o tamanho da problemática social dos nossos tempos.
Caso 1. Em 2012 ocorreu um atropelamento coletivo de 17 (dezessete, isso mesmo) ciclistas em Porto Alegre por Ricardo Neis, funcionário do Banco do Brasil — sim, é fundamental dar nomes aos bois, nesse caso, aos motorpatas (Reportagem da época aqui).
Caso 2. Em 2020, a cientista social, pesquisadora e cicloativista Marina Harkot, 28, foi atropelada em morreu no local na cidade de São Paulo. Em 2018 ela havia defendido sua dissertação sob o título “A bicicleta e as mulheres: mobilidade ativa, gênero e desigualdades socioterritoriais em São Paulo” (aqui). No mês seguinte a sua morte, o Observatório do Clima — a coalizão mais legitimada no Brasil e com uma rede de redes com mais de 70 organizações que apoiam políticas climáticas mais eficazes e justas — por meio da plataforma Gênero e Clima publicou uma nota de pesar e as hashtags: #MarinaVive #JusticaPorMarina e #NaoFoiAcidente. Outras hashtags dão a dimensão do confronto que vivemos: do #NaoFoiAcidente até #BastaDeMortesNoTransito e #VaiDeBike.
Por outro lado, e para além dos casos mortíferos, no mundo há um movimento (de fato há vários movimentos de cicloativistas e cidadãos), iniciado em 1992, conhecido como Bicicletada ou Massa Crítica – aqui. Um movimento-cidadão onde os ciclistas e cidadãs e cidadãos que possuem bicicleta decidem trafegar normalmente pelas ruas às sextas-feiras. Por certo, as leitoras e leitores já devem imaginar: sexta-feira em pleno hora de pico, ao final da tarde, como fica a situação do encontro de uma massa crítica, não de carros, mas de bicicletas, pelas ruas? É o direito à cidade que faz o cidadão se apropriar não só das legislações, mas dos espaços de direito de fato. E esse movimento foi realizado após o atropelamento coletivo em 2012 em Porto Alegre.
É fundamental ações e práticas em várias esferas e espaços de convivência entre bicicletas e automóveis, ciclistas e motoristas. O automóvel não irá desaparecer magicamente das vias, porém, é um confronto de ideias de como a vida deve ser vivida. É um encontro-confronto de ideologias. É a ideologia de um mundo onde o cidadão pedestre ou ciclista tem preferência sobre aqueles que estão agarrados a uma ideologia do fóssil, se sentem no direito de aniquilar o Outro e se colocam como subversivos e acima de qualquer tipo de regramento legal.
Há muitas lutas por vir e a disputa no campo das ideias é a mais feroz, por ter consequências em nossos corpos-territórios.
Porém, há esperança. Além de ter em mente a legislação vigente (e a consciência que ainda temos muito por legislar a favor de ciclistas e pedestres), são necessárias ações sociais pragmáticas como as ocupações de direito da cidade (e das ruas) pelas cidadãs e cidadãos, pedestres e ciclistas. O direito de pedalar, o direito de utilizar um veículo saudável e que não polui, o direito de se mover sem ser aniquilado por uma arma-veicular.
Dica às/aos cicloativistas: últimas sextas-feiras do mês, 18h, Largo Zumbi dos Palmares, Porto Alegre. Uma prática que pode ser (re)tomada periodicamente.