Se tem alguém na música brasileira que fez jus ao verso da música “A filha da Chiquita Bacana”, do Caetano, é Nara Leão. A marchinha do “antigo compositor baiano” tem um verso que diz “eu transo todas sem perder o tom”. Conforme nos mostra a narrativa cheia de informações e, ao mesmo tempo, leve e envolvente do Hugo Sukman em “Nara – 1964”, da excelente série O livro do disco, da editora Cobogó, Nara é figura fundamental de vários movimentos e momentos da nossa cultura.
Foi no seu apartamento que se reuniram para noitadas de rodas musicais os nomes que fizeram com ela a Bossa Nova. Em seguida, no seu disco individual, ajudou a dar visibilidade para o samba de Zé Keti, Cartola e toda uma geração de compositores e seus tesouros que circulavam pelas escolas de sambas e morros cariocas. Dividiu o palco do espetáculo Opinião com Zé Keti e João do Vale, num momento em que a arte liderava a luta contra a ditadura. Foi a primeira a gravar Chico Buarque. E está na capa do disco Tropicália. Mais tarde, gravou um disco todo de canções de Roberto e Erasmo, em mais um gesto para relativizar as fronteiras tão estanques entre os gêneros da música brasileira.
O livro recupera também o contexto em que os CPCs, os Centros Populares de Cultura da UNE, reuniam intelectuais, músicos, cineastas, pessoal do teatro, poetas, todos criando e formulando propostas que mexiam com os valores e propunham novos caminhos. Coincidentemente, meu filho, o Leo Silvestrin, fez seu TCC na Faculdade de Artes Visuais da UFRGS sobre o CPC. É um documentário que mostra um momento rico da nossa cultura que acabou meio deixado de lado.
Ao ver o documentário do Leo e alguns meses depois ler o livro do Hugo, tive a sensação de que, mesmo para quem tem um pensamento político mais à esquerda, o CPC passou por um processo de apagamento. Ficou durante um bom tempo como um estereótipo de arte rebaixada, como uma espécie de arte menos arte por ter uma clara intenção política.
Contudo, quando revemos as contribuições de Vianinha, dos cineastas que atuaram no Cinema Novo, de Ferreira Gullar, de Carlos Lyra e mesmo de Vinicius de Moraes, e de outros tantos, todos ligados ao CPC, percebemos que havia ali uma força criativa enorme. Uma das primeiras reações criminosas a essa força foi o incêndio do prédio da UNE pela ditadura.
Rever essa história serve para tirar de dentro de si mesmo todos os preconceitos que se mascararam de discurso estético durante todos esses anos. E que mais soam, vistos em retrospecto, como uma própria assimilação do discurso antiarte, antiesquerda, anti-intelectualidade, antiluta popular que a todo momento tenta se perpetuar.
E termino aqui com um poema do meu livro “Palavra Mágica”, de 1994:
enquanto o rock enrola
nem sombra de samba
cream cracker na bolsa
e os minúsculos militares
são contra a intervenção
que possa azarar
a transmissão demográfica
mas zen tufo são flores
zen tufo são flores
os japoneses têm olhos pequenos
mas um grande sorriso