Adoro nuvens. Não aquelas que fecham o céu e ficam cinzas, ameaçadoras. Falo daqueles flocos de algodão que flutuam sem a pressa de ir a lugar algum em dia de céu azul. Não são inspiradoras? Quando as olho pela janela do avião, tenho vontade de me jogar nelas como se fossem acolchoados de penas. Não aconselho!
Nesse mundo tão materialista, não deixa de ser surpreendente que o intangível ainda encontre apreço, pelo menos em determinados nichos da sociedade. A música, a arte, a poesia e… as nuvens! Etéreas como nossa alma. Será por isso que foram escolhidas como metáfora para guardarem o que temos de mais precioso? Nossa memória? Hoje, guardamos tudo o que não queremos perder, ou esquecer, na nuvem. Não é lindo?
Adoro a ideia de que minhas fotos, músicas, vídeos e não sei o que mais que eu salvo todos os dias sem saber pra quê vão parar nas nuvens. Um pedaço de mim bem protegido lá no céu, me aguardando se para lá eu for algum dia.
Só que a língua, infelizmente, tem encantos que a lucidez estraga. Não devia, mas me peguei perguntando: como assim nas nuvens? E estraguei tudo. Pare de ler agora se você não quiser repetir a bobagem que eu fiz, de perder essa ideia de armazenamento tão poética.
A verdade é que nossos arquivos não vão para as nuvens, eles ficam aqui mesmo, em estruturas plantadas em terra sem graça nenhuma: os data centers. São altos consumidores de energia. Uma enormidade! Seu insumo é energia. Só precisam dela e conexões por cabo com o restante do planeta, intercontinentais de preferência. E, claro, como sempre, proteção contra invasão de intrusos.
O que me chamou a atenção sobre isso foi ler sobre o investimento de 3 bilhões de reais que a empresa Scala vai fazer – apenas na primeira fase de implantação – na região metropolitana de Porto Alegre para construir seu data center. É muito dinheiro, não? Tudo isso para empilhar milhares de servidores que, além de gastarem energia para trabalharem, precisam ser resfriados. Sim, computadores esquentam a cabeça tanto quanto nós humanos, só que pifam.
O anúncio é superlativo: a capacidade inicial do data center será de 54 Megawatt (MW), com potencial de expansão de até 4.750 MW distribuídos em mais de 7 milhões de metros quadrados. Precisei pedir socorro ao meu filho, Pedro, que é engenheiro de bits e bytes, para entender o quão gigantesco é isso. E seria mais ou menos assim: um consumo inicial de energia elétrica igual a uma cidade de 50 mil habitantes, podendo chegar ao equivalente a uma metrópole como Porto Alegre, ocupando uma área equivalente a 700 campos de futebol. 700 campos de futebol povoados por servidores ligados 24h por dia! Ele me contou que essas estruturas estão se espalhando pelo mundo na mesma velocidade que os centros logísticos. Um sistema vende, o outro distribui, numa simplificação grosseira do papel dessa dobradinha que povoa as periferias das regiões metropolitanas.
Na verdade, não é o hábito individual de guardar tudo o culpado pelo tamanho dos data centers. Dados de governo, hospitais, bancos, trânsito e tudo o mais que faz o mundo funcionar de modo instantâneo precisam sair de algum lugar. E está aumentando com a Internet das Coisas, carros autônomos e tantos outros artefatos que estão começando a funcionar de forma automática. Google e a Inteligência Artificial são grandes usuários na compilação e processamento de tudo o que está salvo nesses centros espalhados pelo mundo.
Precisamos de bons milênios para sair de uma tradição oral para a escrita e sabemos da importância do registro do que é dito para a construção das grandes civilizações do oriente e ocidente. Da escrita passamos para a gravação da voz, depois imagens e até o que não se vê. Não paramos mais de acumular dados e dados da humanidade. Da década que eu nasci, posso acessar poucos fragmentos. Minha neta, no ano 2074, terá acesso a praticamente cada minuto de si e do mundo da sua infância. Haja lugar para guardar tudo isso!
Ao contrário da impressão que posso estar passando, não tenho nada contra os datacenters, afinal dependemos deles. Só não consigo imaginar onde isso vai parar. A necessidade deles vai seguir em ritmo, se não exponencial, pelo menos geométrico. De onde vamos tirar tanta energia e espaço físico é uma pergunta que passou a me incomodar e me faz pensar no caminho que a humanidade tomou. Guarda-se tudo o tempo todo, rezando para que não haja apagões .
Mas me deixem dizer, seja como for, é um alívio descobrir que, enquanto venalizamos e sujamos a superfície do planeta, do ar e do mar, as nuvens seguem lá no céu, inalcançáveis à monetização dos humanos. Volta e meia me acusam de andar com a cabeça nas nuvens… Tem lugar melhor?
Foto da Capa: Gerada por IA / Freepik
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