(Para Quica)
Se você tivesse que deixar uma mensagem em uma garrafa que fosse cruzar oceanos, que mensagem você escreveria? Pediria ajuda? Adiantaria? Contaria algo que gostaria que mais pessoas soubessem? Existe algo que você guarde em você que acha valioso o suficiente para que não morra com você?
Esse é um projeto que minha tia está elaborando que consiste no envio de um desenho, feito por ela, de uma garrafa aparentemente vazia e a mensagem começa com “Olá, náufrago urbano”, e a ideia é que a pessoa que receba essa carta com o desenho escreva alguma mensagem a partir do estimulo recebido e envie de volta a ela. Estou há mais de um mês com aquele desenho de garrafa sobre minha mesa de trabalho e ainda não sei o que responder a ela. Mas a cada vez que olho o bilhete e aquele naufrago urbano me acenando, sei que já estou escrevendo alguma coisa dentro de mim.
O que dizer a ela, minha tia, que tem o sangue da mãe que já perdi, o sangue da mãe dela, minha avó, também perdida? Será essa, afinal, a grande mensagem na garrafa? Talvez sejamos mulheres legado de uma família, mensagens transgeracionais que foram deixadas para cruzarem oceanos e ancorarem em litorais desconhecidos. Carregar a história de uma família com seus traumas, perdas e conquistas. Falei ontem num vídeo na rede social que tenho pensado e percebido muito a passagem do tempo, as marcas na pele do cansaço e do que é inexorável, o tempo. Nessa reflexão, em meio a questões culturais sobre o peso do envelhecimento para a mulher e a consequente invisibilidade e progressiva perda de seu lugar na sociedade apenas em função da passagem do tempo, o que refleti com relação ao naufrágio é essa constatação meio cruel, meio tranquilizadora, de saber que em 2 ou 3 gerações praticamente não seremos lembrados. Minha bisneta ou bisneto, se chegar a me conhecer, não pensará em mim ou terá qualquer marca minha em si – pelo menos consciente. Às vezes a garrafa não chega à praia alguma. Fica no mar mesmo, o sol e as intempéries provavelmente apagarão as letras da mensagem e mesmo que alcance as mãos de alguém de nada servirão. Então para que mesmo tudo isso? O que fazemos nessa vida arquipélago?
Talvez a resposta menos pessimista para um texto que já está me parecendo meio pesado seja pensar que a mensagem já é o próprio remetente. Lançar recados ao mar com o desejo de ser lido, lançar a outros esperando com isso levar algo de bom adiante, seja o que nos faça sobreviver nesses continentes cada vez mais afastados e menos continentes que temos vivido. Eu tenho uma mania um pouco estranha de pensar, cada vez que estou em um avião e passo por alguma turbulência, no que eu teria deixado de importante se o avião caísse e eu morresse. Nenhuma das vezes eu consegui pensar em algo importante suficiente. Não fiz nenhuma descoberta importante para o mundo, não criei nada que tenha feito grande diferença na vida das pessoas. Mas, talvez, meu trabalho já possa ter me oferecido a possibilidade de ter falado alguma frase ou até palavra que tenha feito diferença no dia de alguém. Talvez algum amigo ou amiga lembre de algum dia, um abraço, um olhar trocado, alguma tentativa de escuta e palavra que buscasse aliviar sua dor, possam ter feito a diferença também.
Sou uma náufraga urbana, tia. Recebi várias garrafas vindas da minha mãe, vindas de ti, da tua mãe – minha avó, da tua filha – minha prima. Talvez não consegui ler muitos dos recados, talvez outros eu tenha inventado. Mas gosto da nossa história meio incompleta, gosta de saber que tu me ensinaste um pouco a boiar para não afogar, já que ninguém aguenta nadar o tempo todo. Não estou esperando nenhuma embarcação vir me salvar. Talvez estejamos sós de fato, tentando enxergar algum outro que navegue um pouco parecido conosco, até que o mar se confunda com o horizonte.