Ernesto1 é terraplanista. Para ele, a ideia de que a Terra é uma esfera flutuando no espaço é um absurdo criado por conspiradores ateus que querem solapar os princípios morais religiosos que tornam a civilização viável. Segundo os terraplanistas, a explicação para as observações que fazemos é muito simples. Há uma cúpula sobre nós, chamada Firmamento. O sol, a lua e as estrelas estão sob essa cúpula, e são muito menores que nos dizem.
E aquilo que aprendemos desde a escola primária, como os navios desaparecendo no horizonte? Ilusão de ótica. E os cálculos da curvatura da Terra, feitos no Egito antigo por Erastóstenes, usando as diferentes posições do sol no solstício de verão em Siena e Alexandria? Erros numéricos. E as evidências mais recentes como as fotos do espaço? Ah, como você é inocente, fabricação dos americanos, óbvio.
Você pode até achar ridículo, mas o Ernesto não está sozinho. Segundo pesquisas recentes, 7% dos brasileiros, ou seja, 11 milhões de pessoas, não acreditam na esfericidade da Terra. Um número impressionante!
Bom, os 11 milhões que me perdoem, mas, para mim, o terraplanismo é a demonstração do grau em que ainda chega a ignorância humana. Por outro lado, se é um caso extremo de negacionismo, facilmente refutável, definitivamente não é o único que anda assombrando a sociedade atual.
Na minha opinião os mais danosos, atualmente, são o negacionismo climático e a tentativa de desacreditar as vacinas. Recentemente a negação da pandemia e a indicação de tratamentos ineficazes como a cloroquina e a ivermectina, inclusive por profissionais de saúde, foram igualmente graves, e demonstram como posturas anticientíficas tem se tornado cada vez mais disseminadas.
No caso do negacionismo climático, muitos de seus praticantes se autodenominam “céticos do clima”. Ou seja, estariam apenas questionando uma hipótese que ainda teria que ser comprovada.
Não devemos confundir ceticismo com negacionismo. O ceticismo é a base da ciência. Tudo pode e deve ser questionando. Na verdade, faz parte do método científico que o cientista, ao propor uma hipótese para explicar um determinado fenômeno, já apresente não somente as evidências que suportaram a formulação da hipótese, mas também as evidências que, se encontradas, a provariam falsa. Ou seja, levariam à sua refutação. É assim que avançamos.
O negacionismo se difere do ceticismo porque desconsidera fatos e evidências já comprovados. Assim, inverte a lógica da ciência, tornando-se de fato uma forma de anticiência, ou pseudociência. Dependendo da habilidade do praticante, e dos argumentos que utiliza, o público leigo pode se tornar presa fácil dos disseminadores dessas novas formas de obscurantismo. Pois o negacionismo climático consiste na prática de negar que o próprio aquecimento global e as consequentes mudanças climáticas estejam ocorrendo ou, o que é mais comum atualmente, que sejam causadas pelas atividades humanas, apesar das amplas evidências apontando o contrário.
Vamos ver a seguir os principais argumentos e estratégias utilizados pelos negacionistas climáticos, iniciando com os mais explícitos e agressivos (e mais facilmente refutáveis) e depois examinado os mais sutis.
- Os dados não são consistentes.
Essa foi uma abordagem muito comum no negacionismo no século XX. Por exemplo, um argumento era de que as estações meteorológicas de onde as tendências históricas de temperatura eram obtidas ficavam, inicialmente, em áreas rurais e aos poucos foram sendo cercadas por áreas urbanas, que são mais quentes. Assim, as medições davam a “impressão” de que havia um aquecimento generalizado. Hoje com milhares de equipamentos de medição de temperatura espalhados em todos os continentes, oceanos e até no espaço, esse argumento é risível, mas volta e meia ainda o vejo por aí. Há outras versões mais grotescas como usar as ondas de frio como demonstração de que não existe o tal aquecimento (quando o que vale é a média – lembrando que todos os eventos extremos, como eu já expliquei aqui , estão ficando mais extremos);
- A Terra sempre passou por variações climáticas naturais e estamos vivendo mais uma delas.
Esse argumento foi utilizado por muitos geólogos e outros estudiosos de climas antigos quando a discussão sobre o aquecimento global se tornou uma grande polêmica, principalmente a partir dos anos 1990 (seu número é bem menor agora, dado ao conjunto crescente de evidências), e a afirmação é verdadeira na primeira parte. A história do planeta registra significativas variações das temperaturas, teor de gases de efeito estufa na atmosfera, extensão das calotas de gelo, áreas desertificadas e muitas outras. Mas nenhum dos mecanismos que causou tais variações no passado, dos quais os mais comuns são a intensidade do vulcanismo e a variação na radiação solar, explicam o que estamos observando hoje. Além disso, o aquecimento atual está sendo muito rápido e é fortemente correlacionado com a quantidade de emissões de gases de efeito estufa pelas atividades humanas.
- Os combustíveis fósseis são essenciais para a civilização moderna e sua substituição custaria muito dinheiro, que poderia ser melhor aplicado em saúde e educação.
Novamente, a primeira parte do argumento é correta. Os combustíveis fósseis permitiram que a civilização moderna atingisse o grau de bem-estar e riqueza que temos hoje (ainda que mal distribuídos). E continuam essenciais. O que não significa que não possam ser substituídos! Os cálculos apresentados pelos defensores deste argumento geralmente não consideram o retorno em empregos e outras atividades econômicas que a substituição traria. Nem contabilizam os prejuízos, tanto financeiros quanto à saúde de humanos e seres vivos causados pelo uso dos combustíveis fósseis. Além disso, não consideram os ganhos tangíveis e intangíveis de se viver um planeta com ar, águas e terras limpas. A substituição, ainda que venha a ser lenta e complexa, é absolutamente necessária, sob pena do planeta, além de ficar muito mais instável, violento e poluído, simplesmente não dispor de mais recursos para suportar a população humana.
- É tudo tão incerto!
Usei essa frase para agrupar uma série de táticas difusas que os detratores da transição utilizam para plantar dúvida na mente das pessoas. Eles já não negam a influência humana no aquecimento, mas afirmam que não se sabe “se é tudo mesmo culpa nossa” (mas é), ou que “dados recentes estão mostrando que está havendo resfriamento” (não estão). Ou simplesmente fazendo gracejos, para dar a entender que a coisa não é tão séria. Parece algo inofensivo. Mas não é. E ainda estão colocando muito dinheiro dessas campanhas de disseminação de dúvidas.
Como relatei em meu livro “Planeta Hostil”2, um relatório de 2023 da Ação Climática contra a Desinformação (CAAD na sigla em inglês) mostra como notícias falsas foram espalhadas por empresas ligadas à produção de combustíveis fósseis antes e durante as reuniões da Conferência do Clima de ONU (COP 27) em Sharm el Sheikh, no Egito, em novembro de 2022.
O documento (que tem o sugestivo título de: Negar, Enganar, Adiar – representando as principais táticas usadas atualmente pelos negacionistas) aponta que as organizações deste setor gastaram mais de US$ 4 milhões em anúncios da Meta, a empresa controladora de redes sociais como Facebook e Instagram, com o intuito de espalhar informações falsas e enganosa sobre a crise climática e inviabilidade de se abandonar os combustíveis fósseis. Isso apenas para a CIP 27! Um dos maiores anunciantes foi, segundo o relatório da CAAD, o American Petroleum Institute, uma instituição patrocinada pelas empresas de petróleo.
Mais recentemente, foi divulgado que o fundo fechado da família Searle, herdeira de uma das maiores fortunas do ramo farmacêutico dos Estados Unidos, tem discretamente doado centenas de milhões de dólares a instituições dedicadas a causas conservadoras, entre as quais o negacionismo climático.
Mas esses são apenas dois exemplos. Há um grande número de pessoas e organizações, muitas discretamente suportadas financeiramente por empresas do setor ou seus investidores, que procuram lançar dúvidas sobre a existência ou a importância do aquecimento global e das mudanças climáticas, consequentemente, da necessidade de se abandonar os combustíveis fósseis.
Embora nos últimos tempos o negacionismo tenha vestido roupagens ideológicas, ele em si não é função da posição política de uma pessoa, e sim da falta de senso crítico, de raciocínio lógico. Pesquisas recentes mostraram que essa habilidade pode até ser desenvolvida, mas não é diretamente ligada à inteligência ou ao grau de educação. Fatores como predisposição genética, personalidade (que é, em parte, fruto da genética), ambiente onde a pessoa se desenvolveu o vive, entre outras, que podem ser mais influentes do que a inteligência ou o grau de educação.
As pessoas não gostam de ser enganadas, de se passar por ingênuas. Pelo contrário, a maioria vive se gabando de sua esperteza, de fazer bons negócios e, hoje em dia, de escapar dos muitos golpes que se anda praticando nas redes sociais. Por que então se deixam ludibriar tão facilmente por argumentos falsos e anticientíficos? O mundo está cada vez mais complicado. Se as pessoas não querem ser vítimas de algoritmos mal-intencionados que vão fazer justamente isso com elas, basta usarem a melhor ferramenta que tem a seu dispor: seu próprio cérebro.
Notas:
1Nome fictício.
2O livro “Planeta Hostil” foi publicado pela Editora Matrix, de São Paulo. Pode ser adquirido no site da editora ou na Amazon.
Observação final: Para vídeos e textos adicionais confira também meu Instagram @marcomoraesciencia.
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Foto da capa: Freepik