Depois de uma boa pausa, estava me preparando para retomar as escritas para a plataforma Sler e escolhi falar sobre a atriz Léa Garcia. Na verdade, seria sobre o choque da notícia de sua morte horas antes de ela ser homenageada no 51° Festival de Cinema de Gramado. Alinhavei umas ideias e deixei para finalizar o texto no fim de semana. Me enrolei, e o festival acabou. A obra Mussum, o filmis conquistou seis Kikitos, inclusive nas categorias de melhor filme e melhor ator.
Adorei. Então, mudei um pouco a pauta.
Não vi o filme, mas a notícia de um personagem como o Mussum ter sua história disseminada alegra meu coraçãozinho.
Uma das razões da minha pausa na escrita foi o fato de me perceber um tanto pesada (não na balança, gente! Já perdi uns 10 kg desde fevereiro, ok? Me respeita, que tô me esforçando!). Embora eu me veja como uma pessoa de bom astral, otimista e cuca fresca, via muita dor nos meus textos, muita reclamação. Essa não sou eu, pensei. E parei.
Escrever é uma terapia pesada, profunda: provoca quem lê, abala quem escreve, e vice-versa. E já estava eu voltando justamente para falar da dor. A dor da perda de Léa. A dor de perceber que uma atriz que acumulou quatro Kikitos na carreira, fora tantos outros prêmios, chega aos 90 anos de vida com aquela invisibilidade “natural” consagrada à maioria de homens e mulheres negras. As pessoas se lembram de seus personagens em uma ou outra novela, talvez em algum filme, talvez ainda no teatro. A Rosa, a escrava perversa, que torturava a “branquelinha” Isaura no fenômeno A escrava Isaura, foi um dos grandes momentos de Léa. Seu papel inusitado na época chamava a atenção pelo rosto marcante em uma das interpretações mais sensíveis da atriz. Mesmo em sua vida pessoal, Léa era especial: foi casada com o imenso Abdias Nascimento, morto em 2011, com quem teve dois filhos.
Embora os prêmios, embora o inegável talento, embora tenha atuado em teatro, cinema e TV, Léa é pouco lembrada pelo público em geral. Ela estava no elenco da peça Orfeu da Conceição, escrita por Vinicius de Moraes, que depois foi adaptada para o cinema pelo francês Marcel Camus sob o titulo de Orfeu negro, imortalizando a música Manhã de carnaval, até hoje cantarolada por franceses de diferentes gerações. O longa ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro. Estamos falando do final dos anos 1950. Não é de novembro passado, entende? Isso tem muito a ver com a dor que carregamos, a dor de existirmos só em um determinado período do ano.
Mas chega, né? Quero evitar isso. Eu não sou dor. Quero falar da alegria e da esperança que é ver Mussum premiado. Quero bater na tecla do protagonismo negro na tela, na arte, em Gramado, na vida.
Para além da caricatura do negro pobre, bêbado, estereotipado, Mussum era, sim, festa, alegria. Mesmo depois de sua morte prematura (tinha 53 anos), segue influenciando e provocando sorrisos entre nós. Perpetuou um modo de falar que é sua marca indelével, colocando o “is” ao final das palavras. Cacildis! Tá brutis! Mas sua importância vai além, muito além. A popularidade de Mussum segue mesmo após sua morte, e ainda hoje vemos os memes nas redes sociais e em camisetas.
Estrela em Os Trapalhões e destaque de muitos esquetes do grupo, ele foi um dos primeiros negros a brilhar no horário nobre da televisão brasileira e uma das primeiras vozes a denunciar o racimo estrutural. No cinema e na TV, fazia graça do assunto com uma naturalidade da qual se ri até hoje. Um exemplo é uma cena em que interpreta o rei da França pré-Revolução e, ao ouvir Zacarias dizer que a situação está “preta”, ele responde: “Eu não estou me referindo a mimzis!” Ou quando era chamado de “negão” em inúmeros outros quadros em que rebatia: “Negão é o teu passadis”.
Em Gramado, Aílton Graça, que vive Mussum no filme com incrível semelhança, recebeu o prêmio de melhor ator, enquanto o de melhor trilha musical ficou com Max de Castro. Também foram premiados os coadjuvantes Neusa Borges e Yuri Marçal. O troféu do júri popular também foi para o longa de Guindane.
Vale lembrar que Antonio Carlos Bernardes Gomes, o eterno Mussum, já foi tema de um belo documentário biográfico, em 2019, dirigido por Susanna Lira. Mussum, um filme do cacildis não faz concessões, não fantasia, mostra a vida de Mussum com a dureza que tinha.
A obra de Silvio Guindane, festejada no sábado (19) em Gramado, atenua bastante as agruras do personagem, pelo que li e ouvi, pois, repito, não vi o filme. Ela parece ser uma versão mais televisiva que estimula e conecta nossa memória afetiva com aquela figura simpática, popular, tão próxima da gente. Mussum, o filmis mostra a vida do artista desde a infância, passando pelo período no Exército, sua importante carreira no grupo Originais do Samba e sua fase na televisão em Os Trapalhões entre os anos 1970 e 1990.
Nesses dias em que vivemos um dar-se conta e a necessidade de enfatizar o protagonismo negro em diversas áreas, uma obra como Mussum, o filmis ganha valor redobrado. A gente fica aqui feliz, torcendo para que o povo corra para as salas de cinema. O filme está com estreia prevista para o dia 2 de novembro. Ah, é… Novembro, né, gente!
Revisão: Rodrigo Bittencourt
Foto de Léa Garcia: Edison Vara – Agência Pressphoto / Divulgação
Foto da Capa: reprodução do Youtube