Não tenho como explicar (talvez porque o assunto seja muito diáfano, talvez porque eu seja um escritor ruim, vocês escolhem o motivo) o que eu sentia quando mudei de uma cidade de economia bovina e mentalidade idem para Porto Alegre, para cursar a faculdade de jornalismo em 1992. Claro, não sou ingênuo, sei que boa parte das minhas memórias positivas daquela época são também a nostalgia inevitável de uma juventude em que minhas juntas tinham mais cartilagem e minha cabeça tinha mais cabelos, mas havia em curso alguma coisa diferente do de sempre, e era fácil notar.
Para começar, eu havia recém-chegado de uma cidade da metade sul em que vigora até hoje uma alternância de fachada entre dois campos opostos da elite local. Aqui parecia haver uma pluralidade maior de visões, o orçamento participativo era uma experiência real e vinha dando resultado. Tentava-se algo diferente da tradicional emendinha na mão do vereador para destinar uns caraminguás para encher de asfalto uma rua qualquer em troca de votos.
Tínhamos ônibus naquele meu povoado de origem, mas eles passavam de hora em hora e, sendo uma cidade do Interior, era mais fácil fazer tudo a pé – o que, na época, não era problema porque minhas juntas tinham mais cartilagem e minha cabeça etc. Não seria possível fazer o mesmo numa cidade de dimensões para mim então tão grandes como Porto Alegre (o que não me impediu de tentar – certa vez caminhei da Silva Só até o final da Ipiranga, em outra ocasião, fui andando do Passo D’Areia à Azenha). Mas aí entrava um elemento que me fazia admirar Porto Alegre: tínhamos ônibus.
Hospedado durante umas semanas na casa de um amigo logo que cheguei à cidade, num edifício comprido que fazia uma curva na rua lá pelo número oito-mil-e-tantos da Avenida Ipiranga, meu primeiro semestre da faculdade foi praticamente a bordo da Linha 343, Campus Ipiranga, ou da 353 Ipiranga/PUC (uns bons 15 anos depois, quando voltei à UFRGS para fazer mestrado, encarei também o D-43, a chamada “linha universitária”, que a Prefeitura atual, já de caso pensado para o que vimos esta semana, extinguiu no ano passado).
Certa vez eu e esse meu amigo fomos a uma festa no Cristal para a qual um vizinho dele havia recebido um convite. Achávamos que seria uma espécie de “boate” (como então chamávamos) igual a todas as outras, mas chegamos no hipódromo e o bagulho era um desfile de moda. Deslocados, sem capacidade de interação com gente descolada que se vestiam com roupas que provavelmente custavam o nosso aluguel de um ano, nos restou beber. No final da noite, ou melhor, já era início do dia seguinte, ainda achamos um camarada simpático o bastante para nos dar uma carona. Não até onde a gente morava, que para ele era longe, mas até uma parada onde esperaríamos o T-4. Tempos pré-Código de Trânsito, o carro já estava lotado, então fomos eu e meu colega de apartamento sentados no bagageiro do carro, pés para fora, perigosamente adernando nas curvas. Lembro mais disso do que da viagem no T-4 porque, de modo geral, as viagens de ônibus na época eram assim: sem muitos eventos dignos de nota, inclusive lotação extrema.
Muitas idas ao aeroporto não teriam sido possíveis sem o T-5 (como detesto avião, raramente ia lá para viajar, sempre era para apanhar na volta uma namorada que na época trabalhava como recepcionista em eventos e ia com alguma regularidade a Santa Catarina).
Uma coisa que para mim é surpreendente no atual discurso de quem defende a recente privatização da Carris é justamente essa insistência na necessidade de “eficiência do serviço”, quando 1) essa eficiência estava lá e foi dilapidada e 2) quem fala isso aparentemente nunca anda de ônibus, e portanto não está inteirado do grau de eficiência das linhas das concessionárias privadas. Um quadro que já era preocupante de falta de veículos, de carros sucateados e de superlotação em horários de pico só se tornou mais alarmante após a pandemia.
Mesmo hoje, com o retorno gradual das atividades em aglomerações pós-pandemia, ainda a Carris estava lá fazendo parte do meu cotidiano – várias vezes vim para meu atual trabalho a bordo de um T-11 (linha demorada, um tanto caótica e sempre lotada, talvez num reflexo do gradual e voluntário sucateamento produzido nos últimos anos com o intuito de passar a empresa nos cobres).
O que aconteceu esta semana em um movimento abrupto e um tanto apressado. A Carris e seus mais de 150 anos de história foram à venda, e foram, dentre todas as alternativas possíveis, arrematadas por uma empresa de Viamão, Viamão mesmo, aquela cidade que se tornou referência no léxico popular de lugar servido por um transporte público precário (desafio a encontrar alguém em Porto Alegre que não tenha escutado já uma variação do dito “pegou o Viamão lotado e quer sentar na janela?”)
Quando me mudei para Porto Alegre, algumas ruas no centro ainda mostravam a cicatriz dos antigos trilhos de bonde aflorando entre o asfalto. Já na época eu achava que a ideia de cidade de aposentar esse tipo de transporte em sua região central talvez houvesse sido equivocada (poderia ser essa a forma autorizada de circulação de veículos na região central, desafogando o trânsito trancado do Centro, por exemplo). Não tenho muitos elementos para defender essa ideia hoje. Manter os ônibus cumprindo o horário talvez já fosse o bastante, mas nem isso foi realizado.
“Rodar de ônibus pela cidade só por hobby é triste”, cantava no fim dos anos 1990 o fenômeno indie escocês Belle & Sebastian. Uns anos depois, cheguei a ler uma entrevista com o criador da banda, Stuart Murdoch, em que ele comentava sobre o quanto suas músicas eram compostas ou inspiradas pelo fato de que ele rodava muito de ônibus por Glasgow, uma cidade com um serviço eficiente de transporte público. Fico pensando se alguém pensará em 50 anos algo semelhante ao que eu pensava, se haverá algum indício disponível de que esse serviço privatizado com alto potencial de ser um desastre nem sempre foi assim.
Como eu disse, eu não sou engenheiro de trânsito e isto aqui é só uma crônica. Mas ao menos uma coisa eu tenho certeza de saber mais do que os atuais gestores da coisa pública em Porto Alegre.
Eu sei como é um ônibus por dentro.