Quando viajo de carro costumo ouvir músicas e podcasts. Gosto de ouvir depoimentos e análises que me trazem novidades ou que questionam as minhas verdades. No Podcast “Bom Dia Óbvios” – Episódio 152, ouvi a entrevista com Valeska Zanello, professora de Psicologia Clínica da UNB, que criou a metáfora “Prateleira do Amor” para exemplificar as relações em que as mulheres são vistas como produtos. Me chamou a atenção de que o amor não é universal, ele está atravessado por processos históricos e pela cultura. Da mesma forma, o padrão de beleza se modificou ao longo da história. Nos séculos XIV e XV o ideal de beleza eram mulheres gordas e com a pele mais branca possível. Na Idade Média, as ruivas eram consideradas bruxas. O padrão de beleza dos homens na Grécia antiga era de cintura fina e pênis pequeno.
A professora Valeska diz que nós passamos por uma pedagogia afetiva que molda os nossos relacionamentos. Ela lembra que os produtos mais desejados estão nas prateleiras dos supermercados e farmácias na altura dos nossos olhos. Nas mais baixas, estão os produtos que precisamos fazer algum esforço para alcançá-los. Na metáfora da Prateleira do Amor, Valeska pergunta: “Se as mulheres são os produtos, quem são as que ocupam as prateleiras das mais desejadas? É fácil de acertar, as escolhas estão relacionadas com o atual padrão estético, machismo e etarismo que estabelecem como ideal de beleza mulheres jovens, brancas, altas, magras e loiras”.
Em alguns momentos fiquei em dúvida se concordava com tudo que ela falava, mas achei muito interessante a sua abordagem. Valeska diz que os homens são educados para amar muitas coisas e também as mulheres. Já as mulheres são educadas a amarem os homens e se sentirem felizes quando forem “escolhidas” por alguém. Concordo quando ela diz que os homens se sentem no direito de avaliar as mulheres. Nas praias se vê homens barrigudos chamando mulheres gordas de baleia. Ou, um velho de cabeça branca comentando como a fulana está velha.
Interessante observar que os homens gostam de avaliar as mulheres e, para nós homens, a avaliação mais importante é a dos outros homens. Conquistar uma mulher da prateleira das desejadas é exibido para os amigos como um troféu. Nas suas pesquisas, a professora entrou em grupos de WhatsApp de homens e analisou as suas mensagens. Tem grupo de homens que preferem as gordas ou as deficientes como um fetiche, sem a intenção de uma relação afetiva. Me dei conta de que quando recebo comentários engraçados, mas inadequados, “para não perder o amigo”, muitas vezes respondo com um “kkkk”. Esta é uma forma que nós homens usamos para sermos reconhecidos no grupo. É muito comum quando um grupo de homens está reunido e passa uma mulher, alguém dizer “que bunda gostosa”, e os demais validarem aquele comentário, o que a Valeska chama de “carteirinha de pertencimento” ao grupo.
Por incrível que pareça, em algumas regiões, mulheres com mais de 30 anos já são consideradas velhas. A questão do etarismo é muito séria na nossa cultura. Quem nunca ouviu alguém dizer “fulano/fulana já é muito velho/a para isto!”. Impressionante também saber que a saúde mental dos homens melhora com o casamento e das mulheres piora. Não é por acaso que muitas mulheres se libertam quando se separam ou quando ficam viúvas.
As pedagogias afetivas são diferentes para homens e mulheres. Por exemplo, a Pequena Sereia Ariel faz tudo o que ela gosta de fazer, é super curiosa, mas depois que conhece um homem ela fica abestada. Ela vai falar com a bruxa que lhe oferece um corpo de mulher para conquistar aquele homem, porém exige em troca que ela dê a sua voz. Ariel pergunta então para bruxa: “Como vou conquistar um homem sem voz”, e ela responde: “Para que voz se você tem quadril!”. Duas pedagogias afetivas importantes que aparecem neste desenho: primeiro que a coisa mais importante na vida da mulher é ter um homem, e a segunda, se ela quiser ter e manter um homem, terá que aprender a calar a sua boca.
Nesta forma de amar, as mulheres só se sentem desejáveis se tiver um homem que as deseje. A mulher acha que o problema está nela, porque está velha, feia, gorda, de certa forma, incapaz de receber amor. O homem quando não está amando, ele sai com os amigos, “passa o rodo” e se diverte. A mulher não, ela sofre até quando não está amando. O homem não se vulnerabiliza no amor como a mulher.
Tudo isto está muito presente na cultura e no entretenimento. Existem muitos filmes em que homem está perdido e a mulher vai lá e o salva, ou nos desenhos, em que a mulher beija o sapo ou o ogro e ele vira um príncipe, mas quantos filmes mostram o homem se casando com uma ogra?
Viajar de carro nos dá o tempo que não temos no dia a dia, nos permite este tipo de experiência, ouvir, refletir e nos conhecermos melhor. Recomendo que você ouça este podcast. Já coloquei o livro “Prateleira do Amor” na minha lista de próximo a ser lido.
Referências:
– Podcast Bom Dia Óbvios – Episódio 152– entrevista com Valeska Zanello
– Livro “A Prateleira do Amor: Sobre Mulheres, Homens e Relações” – Valeska Zanello, 2022.