Está será uma coluna com muitos assuntos repetidos e alguns novos. A repetição se faz necessária diante dos muitos exemplos de negacionismo, seja explícito, seja dissimulado, que temos visto desde o início das cheias no Sul. Vou discutir aqui principalmente o que estou chamando de neonegacionismo, que pode ser proposital ou, o que é mais preocupante, pode ser suportado de maneira inadvertida até mesmo por pessoas bem-intencionadas.
Você não vai encontrar essa palavra por aí. Nem em português nem em inglês. Então podemos dizer que estamos (porque conto com cumplicidade do editor) propondo esse neologismo aqui na Sler. Por outro lado, se você digitar no seu navegador: climate neo-skepticism vai encontrar alguma coisa.
O neoceticismo climático, segundo os proponentes do termo, se caracteriza por incorporar algumas características do negacionismo, mas o fazem de maneira menos explícita: por um lado, reconhecem que o planeta está aquecendo e que pelo menos parte desse aquecimento é causado pelas emissões humanas, por outro afirmam que a taxa de aquecimento é menor do que a estimada pelos cientistas, que há muitas incertezas sobre as previsões e questionam se os custos da mitigação não seriam maiores do que a adaptação a um planeta mais quente.
Eu discordo do uso da palavra neoceticismo, porque “ceticismo” se refere à atitude saudável, essencial para a ciência e até para a vida de todos nós, de se questionar uma hipótese até que o conjunto de evidências que a suportam a tornem irrefutável. Quando se trata de negar algo muito bem fundamentado como a responsabilidade humana pelo atual aquecimento do planeta, na minha opinião, é negacionismo mesmo, ainda que às vezes revestido de uma aparente seriedade científica.
O negacionismo “tradicional”, mais direto e agressivo, proliferou amplamente durante a recente tragédia climática no Sul. Segundo reportagem do Estadão, postagens falsas creditam a tragédia do Sul à agenda 2030 da ONU1, ao programa Haarp2 e até a um suposto ritual da cantora Madonna. Tais afirmações são claramente mal-intencionadas, e até ridículas, ainda que sejam levadas a sério por muita gente.
A revista ISTOÉ desta semana, na sua reportagem de capa, da qual eu fui um dos colaboradores, traz uma análise das fake news e das atitudes negacionistas que se seguiram à tragédia do Sul, citando especificamente figuras como Pablo Marçal, Eduardo Bolsonaro e o senador gaúcho Luiz Carlos Heinze.
Ainda que seja nocivo, o negacionismo mais agressivo tem sido desacreditado por muitos. Então, percebe-se algumas mudanças de estratégias. O senador Flávio Bolsonaro, conhecido, como a maior parte dos políticos bolsonaristas, por defender agendas antiambientais, usou uma abordagem mais sutil, ao negar que a tragédia tenha tido relações com as mudanças climáticas, declarando: “Será que o que está acontecendo agora é porque estamos emitindo mais carbono na atmosfera que emitíamos em 1941? Não. A realidade é que cidades foram construídas, (gerando) mais asfalto, cimento, prédios, menos áreas de absorção de água nessa área que já é sujeita a alagamentos. É o crescimento urbano desordenado”.
Perceberam a diferença? Não é uma negação pura e simples. A segunda parte da frase está correta. A impermeabilização das áreas urbanas e a ocupação de áreas mais propicias a sofrer os efeitos dos desastres naturais é uma das causas do agravamento desses eventos. Mas ao apontar uma das causas como a única responsável ele justifica a continuidade da agressão à natureza, como as emissões de gases de efeito estufa, desmatamento e destruição de ecossistemas.
Agora vou entrar num terreno ainda mais delicado, em que pessoas que, claramente, não são negacionistas, acabam servindo aos propósitos destes, através de uma espécie de “miopia climática” (mais um neologismo!), ou seja, desvio do foco principal para questões relevantes, porém secundárias.
Essa semana o jornalista Pedro Dória entrevistou o Eduardo Bueno, conhecido por todos nós como Peninha. Eu sou fã dos dois, como jornalistas e historiadores (sim, o Pedro tem dois livros excelentes sobre a história do Rio de Janeiro e a Inconfidência Mineira).
A entrevista, que é ótima, divertida e cheia de informações interessantes, como não poderia deixar de ser com o Peninha e suas famosas digressões, é assim anunciada:
Eduardo Bueno, o historiador Peninha, explica a causa das enchentes no Rio Grande do Sul.
Na entrevista, segundo Peninha, a causa da tragédia “são os 500 anos de ocupação errada” (no final eles concordam que a coisa piorou com a especulação imobiliária depois dos anos 1940). Em nenhum momento da entrevista ele ou o Pedro Dória falam sobre o aquecimento global que induz as mudanças climáticas. Ou seja, se nos guiarmos por essa entrevista, bastaria corrigirmos os erros de ocupação urbana e fundiária e o problema estaria resolvido. Quase a mesma coisa que o Flávio Bolsonaro declarou! Esse desvio de foco, agora realizado por pessoas bem-intencionadas, é muito perigoso.
Outro exemplo de foco equivocado é colocar toda a culpa nos governantes, principalmente nos atuais. Os ativistas ambientais gaúchos, na maioria ligados à esquerda e, consequentemente, à oposição aos atuais governos do estado e da capital, se apressaram em culpar Eduardo Leite e Sebastião Melo pela tragédia.
E têm toda razão ao apontar o governador e o prefeito de Porto Alegre como tendo responsabilidade no que aconteceu. O governo de Eduardo Leite flexibilizou o Código Estadual do Meio Ambiente com alteração de 480 artigos. Apesar do governador afirmar que o objetivo era “conciliar proteção ambiental com desenvolvimento”, a maioria das análises que eu li apontam que se trata de um eufemismo para um verdadeiro desmonte das proteções ambientais.
Sebastião Melo, por sua vez, sempre foi conhecido por suas posições antiambientalistas e, ainda que seja difícil de acreditar, não chegou a ser surpresa descobrirmos que sua gestão investiu zero (isto mesmo, zero!) reais na proteção contra as cheias em 2023, quando pelo menos três eventos, o pior deles em setembro, indicavam que Porto Alegre estava fragilizada.
No entanto, apontar os governantes da vez como os únicos culpados é simplificar por demais a questão. Estamos falando de dezenas, senão centenas, de anos de agressão e desprezo à natureza, sua dinâmica e seus ecossistemas. Desde o início da revolução industrial, a humanidade experimentou um progresso civilizatório fantástico, mas ignorou os custos ambientais destes avanços.
Voltando ao Peninha, na mesma entrevista3: “…os governos são o retrato da sociedade civil brasileira, nós deixamos que essas pessoas que destroem o país e vivem sonhado em morar em Lisboa, Paris ou Miami tomassem conta do processo…”
Agora sim, ele tem toda a razão. Todos nós somos responsáveis pelo que está acontecendo. Afinal, quem elegeu esses políticos e esses governantes? Quem colocou interesses econômicos imediatos, a concessão de incentivos, ou a promessa de asfaltar aquela estrada ou de reconhecer uma área ocupada ilegalmente acima dos cuidados com o meio ambiente? Se você não fez nada disso, alguém próximo de você certamente o fez.
Eu vou ser repetitivo: a principal causa dos frequentes eventos extremos que gaúchos, brasileiros e pessoas do mundo inteiro estão presenciando são as mudanças climáticas causadas pelo aquecimento da atmosfera, que é por sua vez causada pela emissão de gases de efeito estufa pelas atividades humanas. Já estamos vivendo em outro planeta, muito mais hostil, perigoso e imprevisível4. É fundamental reconhecermos isso, e nos preparamos não para eventos extremos que aconteceram, mas para os muito piores que estão por vir, e nos mobilizarmos para evitar que se tornem ainda mais catastróficos. Esse deve ser nosso foco primordial.
Imagino que esse texto pode ter trazido certo desconforto. Muitos de nós têm dificuldade de admitir que a culpa também é nossa. É mais fácil culpar os outros. Mas, como disse o Peninha na entrevista: “a culpa é de todos nós”. Temos que assumir essa responsabilidade, buscarmos informações de qualidade, sairmos do conforto dos clichês ideológicos, votar e cobrar de governantes e políticos o compromisso com a sustentabilidade, e atuar mais fortemente dentro de nossa esfera de influência. Todos nós, você, eu e toda a sociedade, temos uma parcela de responsabilidade pelo que está acontecendo e devemos trabalhar duro para agirmos com a urgência que a situação exige.
Se você discordar de alguma coisa use nosso espaço para comentários. Eu adoraria ouvir sua opinião, mesmo que tenha pitadas de neonegacionismo.
1Agenda 2030 é um plano de ação global adotado pelas Nações Unidas em setembro de 2015, composto por 17 objetivos de desenvolvimento sustentável. O documento inclui temas como erradicação da pobreza, fome zero, saúde e bem-estar, educação de qualidade, igualdade de gênero, entre outros. É atacado por conservadores e negacionistas por conter em suas metas, segundo Jair Bolsonaro: “a nefasta ideologia de gênero e o aborto”. A relação com os eventos climáticos, nesse caso, se dá por um raciocínio sinuoso, que é comum nas campanhas negacionistas.
2O projeto HAARP, sigla em inglês para “Programa de Pesquisa Ativa de Alta Frequência de Auroras”, foi criado pela Universidade do Alaska Fairbanks com o objetivo de pesquisar ondas da ionosfera (camada da alta atmosfera). Os negacionistas o têm acusado, sem nenhuma evidência, de interferir no clima do planeta.
3Resumi um pouco a frase falada por ele, mas sem prejudicar o conteúdo.
4“Planeta Hostil”, como você sabe, é o título do meu livro que descreve de forma abrangente os processos de degradação ambiental do planeta. Se você ainda não leu pode adquirir em livrarias de todo o Brasil, no site da editora Matrix (www.matrixeditora.com.br) ou na Amazon.
Observação final: Para vídeos e textos adicionais confira também meu Instagram @marcomoraesciencia.
Foto da Capa: Agência Brasil
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