Abuso sexual, um tema recorrente, grave, incômodo, que por alguma razão foge à nossa compreensão, continua sendo difícil de lidar, deixando meninas e mulheres presas psicologicamente ao terror de remoer um episódio do qual nunca tiveram nenhuma responsabilidade. E que as obriga a carregar uma culpa pelo resto das suas vidas. Culpa que nunca foi delas.
A nova série da Netflix “Ni una más” traz novamente à luz um problema estrutural e nos força a refletir sobre a nossa dificuldade em gritar e expor abusos e abusadores. A trama retrata o drama na chamada geração Z, pessoas nascidas entre 1997 e 2010, mas poderia ser qualquer geração. A dinâmica é sempre a mesma.
“Eu não posso, não tenho provas. Se eu denunciar, será a minha palavra contra a dele. Se eu denunciar, terei que passar por tudo aquilo de novo. Não posso. Só de pensar nisso, me dá vontade de morrer.”
O trecho acima faz parte de uma das cenas quando duas amigas conversam sobre o abuso sexual que uma delas sofreu quando tinha cerca de dez anos de idade. A produção espanhola para a Netflix é baseada no romance homônimo escrito por Miguel Sáez Carral, publicado em 2021. “Ni una más” já é uma das séries mais vistas da plataforma no momento e, apesar de ser ficção, nos empurra para uma realidade já conhecida por muitas de nós. Sempre há mais uma.
“Cuidado, aí dentro se esconde um estuprador!”. Logo na primeira cena já temos o tom da trama. O silêncio, a raiva e a impotência que a protagonista Alma sente diante de uma sociedade machista e heteropatriarcal faz com que ela enfrente uma infinidade de problemas ao longo dos oito episódios. A jovem que não entende porque suas amigas não denunciam seus agressores. Sutilmente a trama mostra diferentes formas de abuso, explícitos e disfarçados. Tema batido? Sim, contudo sempre atual.
Repetição de comportamentos vividos dentro de casa, submissão, medo, conflito. Feminismo, indignação, luta, esperança de mudanças. Diferentes personagens transitando por situações que já são nossas velhas conhecidas: mulheres que convivem com o abusador seja no trabalho, na universidade, na escola, nas ruas, hospitais, dentro de casa, nas relações “amorosas”. Mulheres que não escancaram a verdade por medo. Medo da exposição, da descredibilização, de acharem que fizeram algo para merecer, medo de causar um mal estar familiar. Medo.
“Você deveria denunciar. Ou pelo menos contar o que ele fez com você. Não se trata apenas de você, ainda dá tempo de evitar que muitas garotas sofram o que você sofreu. Tenho certeza de que aquele desgraçado está procurando uma nova vítima agora mesmo.” Novamente uma frase da série. Novamente uma verdade que já sabemos. Novamente muitas de nós seguimos caladas. Você se identificou? Imagino que sim.
“Ni uma más” traz referências do movimento “MeToo” criado pela ativista Tarana Burke em 2006. O movimento ganhou destaque e passou a ser mais conhecido em 2017 quando a atriz Alyssa Milano usou sua conta no então Twitter para incentivar que mulheres em todo o mundo utilizassem a hashtag #MeToo como protesto e demonstração de apoio a outras mulheres que vivem o drama do abuso: “If you’ve been sexually harassed or assaulted write ‘me too’ as a reply to this tweet.” (Se você sofreu assédio ou agressão sexual, escreva ‘eu também’ como resposta a este tweet.)
Desde então, milhares de mulheres passaram a usar #MeToo para denunciar esse que é um problema coletivo.
Como fenômeno de comunicação o MeToo continua ainda hoje sendo considerado um êxito, porém a pergunta que devemos nos fazer é se no nosso dia a dia algo mudou. A utilização da hashtag nem sempre vem acompanhada da denúncia explícita. MeToo, mas quem é a PESSOA que te fez entrar para as estatísticas?
Não é fácil contar a alguém que você foi vítima de estupro ou agressão. O processo de entendimento é muito lento e algumas vítimas podem se sentir “revitimizadas” só de falar no assunto. Séries como esta podem ajudar uma vítima a perceber que “não está sozinha” e por mais que saibamos que não estamos sozinhas, nos custa dar o passo.
Passei os oito episódios pensando nas dezenas de situações que já tive conhecimento ao longo da vida e que aconteceram em primeira pessoa ou com pessoas próximas. Existem várias formas de abuso e infelizmente somos expostas desde o momento em que chegamos ao mundo.
Abusadores não respeitam nada e nem ninguém, nem mesmo os laços familiares. Aliás, é sabido que é dentro da própria família, ou no círculo próximo a ela, onde acontecem grande parte dos casos de abuso.
O que mudou ao longo das gerações é que antes as mulheres sofriam sozinhas e se escondiam como desse. Hoje, de uma certa forma, se escondem atrás das hashtags e de movimentos feministas, que dependendo da perspectiva fazem com que elas tenham a sensação de pertencimento e se sintam acolhidas, mesmo que virtualmente, por um grupo de apoio. Porém, quebrar o ciclo da violência de verdade ainda não é unanimidade. Até as mais esclarecidas, cultas, ativistas e descoladas guardam algum segredo, seja por respeito à vítima ou por querer preservar quem vai sofrer com a revelação. Ou melhor, até elas são vítimas, tanto dos abusadores quanto do sistema que os protege.
Sempre haverá “una más”.
Foto da Capa: Netflix/Divulgação
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