Pink Floyd: The Wall é um álbum de 26 canções lançado pela banda inglesa Pink Floyd em 1979. Com a distância de mais de quatro décadas de seu lançamento, pode ser hoje definido como parte de um conjunto multiplataforma. Depois do álbum, The Wall foi mais de uma vez apresentado na íntegra em turnês, seja da banda, seja do principal compositor do material, Roger Waters. Também se tornou um filme experimental, em 1982, dirigido por Alan Parker, com Bob Hoskins no elenco e com o músico e ativista Bob Geldof interpretando o protagonista, um astro de rock traumatizado pelo isolamento autoimposto durante uma vida inteira, criando dentro de si um “muro” para se proteger dos traumas do passado. As apresentações de Waters interpretando o show como uma versão ao vivo do disco conceitual deram, por sua vez, origem a um filme sobre a turnê, lançado em 2015. E, finalmente, ganhou versão operística em 2016.
Em todas essas versões, há uma narrativa que atravessa a obra, uma trama na qual seu principal compositor, Roger Waters, exorciza questões muito profundas de seus traumas e de sua formação: Pink, um músico em crise pessoal, reflete sobre as experiências que o levaram da infância à vida adulta, cada uma delas transformada em um “tijolo no muro” que o personagem ergueu em volta de si: a perda do pai, morto em combate na II Guerra, e, em consequência dessa perda, a opressiva superproteção de que passa a ser alvo pela mãe disposta a mantê-lo o máximo possível “sob suas asas”. A incomunicabilidade nas relações amorosas; o sentimento de solidão e vazio que não é aplacado nem mesmo pela fama obtida junto a um público que o idolatra e pelo sexo que usa como uma ferramenta para preencher seus “espaços vazios”; o colapso total que é negado porque hoje Pink é uma engrenagem em uma máquina na qual “o show não pode parar”; a alienação final e profunda quase como um suicídio espiritual no qual o personagem dá adeus ao “mundo cruel” e abraça uma existência dopada e “confortavelmente anestesiada”.
The Wall alterna vinhetas curtas que marcam transições entre episódios e estados da mente com músicas que podem ser ouvidas como canções autônomas – e fazem parte desse segundo conjunto algumas das obras mais conhecidas do público, como Mother, Goodbye blue sky, Hey you, Empty spaces, Run like hell e Comfortably numb. Além, é claro, das três partes de Another brick in the wall, em que se encontram, sumarizados, os motivos principais da obra inteira, tanto na levada musical que se repete com variações ao longo de toda a peça como nas letras, compostas em tetrâmetro trocaico, ou seja, um metro clássico da poesia inglesa no qual os versos enfileiram quatro pares de sílabas que se sucedem no padrão “SÍLABA TÔNICA/sílaba átona” (o nome técnico pra isso é “troqueu”, daí o verso chamar-se tetrâmetro trocaico), provocando um ritmo que se repete com uma cadência rítmica: DAM – ta – DAM – ta – DAM – ta – DAM – ta. É possível ver (e, principalmente, ouvir) esse padrão em versos dispersos ao longo do álbum, como “Daddy’s flown across the ocean…” // “We don’t need no education…” // “I don’t need no arms around me“.
Nobody Home
Pink Floyd: The Wall, é também o álbum no qual se encontra Nobody Home, que, além de ser um dos retratos mais viscerais da depressão, também é uma canção fundamental dentro da progressão da narrativa do sofrido Pink.
Essa música aparece no álbum na sequência de Is there anybody out there?, uma peça aterrorizante, cheia de dissonâncias e tons lúgubres na qual o personagem Pink, após haver ensaiado uma tentativa de retorno do desespero em Hey you, parece rastejar enquanto se metamorfoseia em algo novo – e sinistro, saberemos mais adiante. É uma música na qual, entre guinchos e um violão delicado de inspiração clássica, recita-se apenas algumas vezes o título, com uma ambiguidade que não deixa certeza sobre se é uma interrogação esperançosa ou assustada.
Nobody Home, que vem logo na sequência, é o momento em que Pink, ou a versão sombria que o substituirá após seu cérebro ser “devorado pelos vermes” de sua própria paranoia, assume a impossibilidade do seu resgate para além do muro. E não importa o quanto tente alcançar qualquer pessoa pelo telefone, ele sabe que “não haverá ninguém em casa” e que está preso em sua vida sitiada: “Eu tenho uma caderneta preta com meus poemas / Eu tenho uma bolsa com uma escova de dentes e um pente / Quando eu sou um cachorro bonzinho, às vezes me jogam um osso / Eu tenho elásticos amarrando meus sapatos / Tenho essas mãos inchadas e cheias de hematomas / Tenho treze canais de merda para escolher na TV / Eu tenho luz elétrica / e tenho clarividência / Eu tenho poderes incríveis de observação / e é assim que eu sei / que quando eu tentar falar com você pelo telefone / não haverá ninguém em casa”.
Ao mesmo tempo em que essa canção evoca uma melancolia e uma solidão universal tão ou até mais compreensíveis hoje em dia, existe um elemento simbólico que trai a idade da composição e de algum modo demarca uma diferença incontornável entre o antes e o agora: Pink declara textualmente que o telefone é um meio que por vezes não te coloca em contato com ninguém (e em outros momentos do disco será recorrente o toque de uma chamada ao telefone se estendendo até a exasperação sem que a ligação seja atendida).
Passado recente
Esse é o tipo de reflexão-memória que me atinge não apenas nessa questão, mas em outras obras ancoradas em certos momentos do passado. Embora filmes históricos de modo geral possam, com seu apelo visual, despertar minha imaginação sobre como seria viver naquele período, há algumas obras específicas que não me fazem apenas imaginar, mas alternar essa imaginação com algum tipo de memória, porque sou velho o suficiente para me lembrar de como era viver em um mundo próximo àquele, ao menos em alguns aspectos. Eu não vivi nos anos 1960 nos Estados Unidos, por exemplo, como se vê em Mad Man, mas o Brasil dos anos 1970/1980 da minha infância também era, a um tempo de pessoas fumando em qualquer ambiente, uma sociedade em que as principais posições de poder e muitos campos de atividade ainda eram dominados por homens (brancos, claro) e em que, se você fosse gay, era melhor esconder isso de todo mundo ou seria pior para você. Muitas vezes, a única diferença eram as roupas (com larga vantagem para os anos 1960, uma vez que os anos 1970 no Brasil foram anos de adultos vestindo roupas tão justas e vagamente ridículas que se popularizou o uso da famigerada “capanga” simplesmente porque ninguém conseguia levar nada no bolso).
Em um certo toque mais ameno, a questão do telefone, mencionada em Nobody Home, também me é evocativa. Eu ainda me lembro de um mundo no qual, depois de sair do trabalho, se não voltasse para casa (e se, claro, não tivesse telefone), você ficava fora do radar da maioria dos seus conhecidos, até o dia seguinte, se quisesse, do seu chefe aos seus amigos, dos seus contatinhos aos seus familiares.
Run like Hell
Ainda guardo com muita nitidez na memória, por exemplo, o quanto eu, na época com 17 anos, corri, sim, corri adoidadamente pelas ruas do Centro de São Gabriel na tarde de 30 de abril de 1992, à procura do meu pai. Eu trabalhava na mesma emissora de rádio na qual ele também trabalhava, e minha mãe ligou para lá para avisar meu pai de que sua bolsa havia rompido e que ela estava chamando um taxista para levá-la ao hospital, meu terceiro irmão (e quarto filho na contagem) estava por nascer. Só que meu pai não estava lá, ele havia apresentado o programa que lhe cabia e havia saído para cuidar de suas muitas outras atividades (pai, nessa época, também escrevia em jornal, era músico profissional e vendia espaços publicitários para rádios da cidade). Minha mãe então me encarregou de achá-lo e mandá-lo para o hospital o mais rápido possível.
Algo angustiado pela necessidade de que a informação chegasse logo a ele, corri da rádio até o Sindicato Rural de São Gabriel, onde sabia que ele teria uma reunião para tratar de um anúncio. Lá, me disseram que ele já havia saído e provavelmente tinha ido até a Câmara de Vereadores, para onde também me desloquei correndo. Não o encontrando lá, efetuei novas carreiras que me levaram a pelo menos mais três endereços em lugares diversos onde eu sabia que ele poderia estar, por conhecer sua agenda de compromissos de visita a clientes (era eu quem preenchia muitas das notas fiscais que ele apresentava por seus serviços de vendedor de anúncios, por exemplo).
Até que, pingando suor, cansado, sedento, decidi ir eu mesmo (a pé novamente, São Gabriel era dessas cidades em que era possível fazer quase tudo a pé) até o hospital para ver como estava a baixa da minha mãe. No fim das contas, sei lá por quais artes mágicas, meu pai já havia recebido a notícia e chegou quase no mesmo momento que eu, guiado pelo braço por um de seus amigos músicos, Edmar. No fim, correu tudo bem. Meu irmão, Roberto, nasceu na madrugada, garantindo que nós, os irmãos mais velhos, passássemos a vida fazendo com ele as piadas baratas destinadas a chamar de preguiçoso quem nasce no feriado do Trabalhador.
Deriva ao horror
Eu me lembro, portanto, desse mundo no qual se passa Nobody Home, um mundo em que o telefone ficava pregado ou conectado à parede e em que a desconexão era algo possível. Um mundo em que se ligava e não havia ninguém em casa. E se isso mudou com a criação do celular, este dispositivo de ficção científica que hoje carregamos no bolso sem dar muita atenção ao fato, por outro lado, a solidão, a melancolia, o isolamento, ainda são plenamente reconhecíveis como se a música tivesse sido composta hoje.
É importante pontuar aqui que, ao descrever a música nos parágrafos anteriores, eu comentei mais de uma vez que Nobody Home marcava um ponto importante de inflexão na narrativa e que o personagem principal talvez não fosse mais o protagonista a partir daquele ponto. E isso porque (e me perdoem a recapitulação os que são fãs da banda e do disco como eu, mas sei que vivo em um mundo hoje em que muitos, para meu horror, nem ouviram falar de ambos) Pink, em pleno colapso após constatar o tamanho de seu isolamento e extravasar os impulsos agressivos de um homem em completo descontrole, tem uma overdose e precisa ser “recomposto” por uma equipe médica chamada pelo seu empresário.
O Pink que sobe ao palco após essa experiência, contudo, não é mais o ser angustiado do início, é um ídolo de massas que manipula a idolatria de seus fãs para criar o equivalente a um culto no centro de uma agremiação nazifascista: “Pink não está bem, ele ficou no hotel / E nos mandaram aqui como banda substituta / e vamos descobrir o que vocês fãs, realmente defendem“, canta ele na segunda versão de In the flesh, antes de, nos versos seguintes, orientar a multidão no show a “colocar contra a parede” “as bichas”, os judeus e “os crioulos” presentes na plateia. E os que estão fumando um baseado ou que simplesmente têm espinhas. Na canção seguinte, a loucura vai mais longe, com Pink liderando seus comandados em uma razia destrutiva, advertindo que seus opositores e dissidentes deveriam manter seus sentimentos trancados, disfarçar-se o melhor possível e “correr como o diabo”.
Na adaptação em filme, para sublinhar o horror deste trecho específico, o Pink interpretado por Geldof sobe ao palco vestindo um uniforme preto estilo SS, mas em vez da suástica, o símbolo nas mangas e nas bandeiras à volta é formado por dois martelos cruzados, evocando a maneira como muitas experiências totalitárias se apropriaram de instrumentos e ferramentas banais que, recontextualizadas, se transformaram em metáfora para o regime da força bruta.
Um parêntese: em uma prova do mundo algo desesperador em que vivemos, após o lançamento do filme, uma organização neonazista real criada nos Estados Unidos nos anos 1980 adotou o mesmo símbolo a sério.
Muros
O reinado de Pink na narrativa, contudo, está fadado a durar pouco, dado que a certo momento ele próprio desiste de suas pretensões de domínio e se vê julgado pelos fantasmas psicossexuais de sua própria mente. A condenação é finalmente demolir o muro, deixando Pink exposto aos traumas dos quais tentou fugir a vida toda.
Curiosamente, já que falamos de traumas, nas décadas que separam o Thatcherismo satirizado no filme The Wall de nossa triste época contemporânea, muros voltaram a ser coisa séria, erguidos nos EUA de Trump, na Hungria de Órban, no Israel de Netanyahu, na Índia que busca se isolar de Bangladesh. A lista poderia seguir por mais tempo, mas acho que já deu para se ter uma ideia. Em sua maioria, projetos erguidos por novos governos de extrema direita levando a cabo uma agenda ultranacionalista que viceja na retórica do medo. Agora, junto aos bichas, aos judeus, aos negros, aos com espinhas, aos com baseados, podemos ver também os imigrantes.
A extrema direita contemporânea, aliás, que se fez proficiente além de qualquer medida em espalhar seu ideário por esse mesmo dispositivo que antes ficava fixo e hoje você carrega no bolso, transformado em uma espécie de poderoso computador compacto com a maioria dos registros e informações e aplicativos que definem parte de sua vida. Hoje também metamorfoseado em instrumento para mobilização de um culto alienante.
Se o telefone é hoje parte de você, por que, ainda assim, parece não haver ninguém em casa?
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Foto da Capa: Divulgação