Na quarta-feira passada, o céu de Porto Alegre se tornou um denso teto de fumaça. A semana toda foi de alertas para o recorde de queimadas no país, que atingiu cerca de 60% do território brasileiro. Chegou a 4,6 milhões de km², a mais extensa já registrada, com a fumaça se espalhando e encobrindo centenas de cidades. Mato Grosso é o campeão no ranking de focos de incêndio neste ano, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Imagens de satélite mostraram que enormes partes do Estado, inclusive a região da Chapada dos Guimarães, estão sendo devastadas. A grande mídia atribui “parte considerável” desses incêndios a práticas para o aumento da área de pastagens ou abertura de novas fronteiras agrícolas em biomas como o Pantanal, Cerrado e Amazônia. Em cinco dias, a Amazônia foi a região do planeta que mais emitiu gases agravantes do efeito estufa, como o dióxido de carbono. E São Paulo foi a cidade com a pior qualidade do ar no mundo. Para entender precisamente a gravidade do que está acontecendo, recomendo a leitura da coluna de Sílvia Marcuzzo, Qualidade do ar e o desmonte da política ambiental, aqui na Sler.
O governo federal, então – e enfim –, assumiu que não dá mais para adiar a repressão dessas queimadas em todo o país. E começou a estudar meios legais para confiscar terras de autores dos incêndios criminosos, segundo a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva. A medida se inspira na lei que permite o embargo de propriedades de quem explora trabalho análogo à escravidão. (IstoÉ) Está, realmente, mais do que hora de se tomar medidas drásticas, pois é uma questão já enraizada, cultural do agronegócio, que se julga acima de tudo e de todos, imune a qualquer punição. Aqui no Sul, as queimadas simplesmente se naturalizaram. Todo o ano é a mesma coisa: em agosto abre-se a temporada de tacar fogo nos Campos de Cima da Serra. Um mês atrás, fui com meu amigo Lúcio Haeser para São Joaquim (SC) e, na volta para Canela, em um trajeto todo de asfalto – na ida, optamos por estradas de chão –, vimos o horror ao vivo e a cores, em especial entre Bom Jesus e São Francisco de Paula. Inúmeros focos de fogo ao longo da estrada e enormes áreas de campo pretas, tudo queimado. O céu encoberto por fumaça o tempo todo, o sol, aquela bola vermelha difusa. Em praticamente 90% dos casos, o fogo é usado para renovação da pastagem destinada ao gado, mas a prática é proibida pelo Código Florestal do Estado e por lei federal. O que acontece? Nada.
Em reportagem do jornal Pioneiro de 14 anos(!) atrás, o capitão comandante da 2ª Companhia Ambiental de Caxias do Sul, Cezar Augusto Chaves, já sintetizava a questão: “Infelizmente, as queimadas são um hábito. Onde a gente consegue flagrar, tentamos reprimir. Mas, muitas vezes, o fogo atinge a mata nativa, prejudicando as plantas e os animais. E, mesmo nos campos, cobras e cutias que precisam viver, pois são importantes para o equilíbrio ambiental.” Os animais encontrados feridos são levados para o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). O capitão explicou que muitos donos de propriedades rurais lançam mão das queimadas para agilizar a renovação do pasto: “Por pressa, eles não deixam o processo de renovação ocorrer naturalmente. E, ao usar o fogo desse modo, o solo acaba sendo prejudicado, porque fica sem os nutrientes necessários para sua fertilidade”.
Também na quarta-feira passada, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva declarou que o governo, agora, levará definitivamente a sério a questão climática: “Não é mais uma questão secundária, da universidade, apenas de cientistas. É uma questão da responsabilidade de todos nós”. O problema desde sempre é que o policiamento ambiental está sempre aquém da demanda em todos os Estados. Assim, uma das medidas prevê recorrer aos jovens em formação militar para reforçar as linhas de combate às queimadas. “Já que ele (o jovem) está há um ano nas Forças Armadas, vamos tentar preparar esses meninos. São 70 mil jovens por ano, que a gente pode preparar e torná-los profissionais de combate à questão climática. De defesa do planeta, da floresta, da água, da vida humana. A gente pode fazer isso, porque vamos precisar”, declarou Lula ao G1. Acho essa proposta revolucionária. Jovens para defender o planeta e não mais para fazer guerras por fronteiras. Imaginem se em todo o mundo os jovens militares forem treinados para o enfrentamento climático. É uma medida que poderá se desdobrar em maior consciência em toda a sociedade, pois cada jovem desses se tornará também um propagador da defesa da vida na sua família e nos seus círculos de convivência.
Escrevo essa coluna na escura sexta-feira à tarde, olhando para o jasmim na minha janela, que atrai a visita de beija-flores e faz uma barricada perfumada à fumaça lá fora. Amo cada vez mais o meu jardim, que deixo crescer livre, selvagem, com a ajuda dos passarinhos. Eles já semearam o jasmim até na grama da vizinha, que avançou sobre a calçada e inebria os caminhantes do bairro. Tenho flores, folhagens, arbustos, trepadeiras, pitangueiras, limoeiro, capim-cidró, alecrim, manjericão, salsa, boldo, etc. E uma árvore que é o meu xodó. Era um arbusto de tamanho médio, que tirei do vaso, plantei perto do muro e se bifurcou. Um dos troncos resolveu crescer deitado (acreditem!), a uns 40 centímetros do chão. Eu ajudei a sustentar o peso com o calço de uma tora de madeira na ponta final do tronco. Com o tempo, ele próprio estendeu uma nova raiz no meio do quintal, de onde subiram galhos fortes e vistosos, que fazem brotar uma grande flor vermelha em forma de estrela. O conjunto resultou numa baita árvore, impressionante.
Meu jardim remete ao Brasil dos séculos XVI, XVII e XVIII, de influências asiáticas, africanas e mourisca, antes que o processo de europeização fosse deflagrado. O jardim brasileiro, segundo a arquiteta e urbanista Solange Aragão*, “era simples e irregular, sua beleza estava na mistura das espécies exóticas e nativas, na mistura do colorido das flores e das frutas, do verde das folhagens, das ervas e hortaliças. Era um jardim mais utilitário, conforme o gosto dos moradores, que não buscavam uma plasticidade ou uma concepção artística. Ainda assim, era admirado pelos viajantes, que observavam com curiosidade as paisagens, no mínimo pitorescas, dos aglomerados urbanos cercados pela natureza, pontilhados de casas com seus jardins.”
Minha casa mais parece a casa do Hobbit, como disse a amiga Luíza Estima, e meu jardim é uma oferenda a quem passa. Espero, assim, estar contribuindo para o resgate de nosso encantamento com a natureza.
*Ensaio sobre o jardim, de Solange Aragão. São Paulo: Global Editora, 2008.
Foto da Capa: Acervo da Autora
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