Buscando um artigo na revista científica British Medical Journal, encontro uma pérola publicada em junho de 1971: The Satchel and the Shining Morning Face (A mochila e a face brilhante da manhã). O artigo é sobre o relacionamento entre pais e filhos, principalmente aqueles que estão na adolescência. A autoria é de um médico, clínico geral.
Ele principia sua apresentação com quatro frases provocativas e que soam bem familiares:
A primeira: “Nossos jovens amam o luxo e são rudes, ignoram as autoridades e não tem o menor respeito pelos idosos. Nossos filhos hoje são verdadeiros tiranos. Eles não se levantam quando um idoso entra, respondem aos pais e são simplesmente maus.”
A segunda: “Não tenho qualquer esperança para o futuro do nosso país se a juventude de hoje tomar o poder amanhã, porque esta juventude é insuportável, desenfreada, simplesmente horrível.”
A terceira: “Nosso mundo atingiu o seu ponto crítico. Os filhos não ouvem mais os pais. O fim do mundo não pode estar longe.”
A quarta: “Essa juventude está estragada até o fundo do coração. Os jovens são maus e preguiçosos. Eles nunca serão iguais aos jovens de antes. A juventude de hoje não será capaz de manter a nossa cultura.”
Segue o autor: “A primeira frase é de Sócrates, 470-339 a.C.; a segunda de Hesíodo, cerca de 720 a.C.; a terceira é de um sacerdote egípcio por volta de 2.000 anos a.C.; e a última foi descoberta em um pote de argila nas ruínas da antiga Babilônia, e tem mais de 3.000 anos.”
Sir Ronald George Gibson (1909-1989) foi um médico inglês que contribuiu muito para as discussões em torno da construção do modelo de saúde britânico. Escreveu sobre vários assuntos médicos, especialmente sobre o cuidado de idosos, mas nunca perdeu seu interesse pela clínica geral. É dele esse artigo que mostra o quanto as coisas são o que sempre foram. Vale lembrar Salomão, em Eclesiastes: “O que foi tornará a ser, o que foi feito se fará novamente; não há nada novo sob o sol.”
Em seu livro The Family Doctor: His Life and History (O Médico de Família: Sua Vida e História) publicado em 1981, Gibson discorre sobre as transformações que forçaram a mudança de um modelo de atuação profissional. O clínico geral que ainda temos idealizado é aquele médico que atendia todos os membros da família, acompanhando-os por todo o período de sua trajetória profissional. Participava de eventos importantes da história daquelas vidas, em nascimentos, casamentos e mortes. Era procurado até mesmo para questões que tinham pouca relação com a saúde propriamente dita. Mais do que um conselheiro, era considerado um amigo, tanto quanto um doutor.
Muito se lamenta a perda de algumas dessas características, principalmente na intensidade da relação médico-paciente. Mas é inegável que o volume do conhecimento e os grandes avanços tecnológicos, no diagnóstico e nos tratamentos, que são também responsáveis por muito dessas mudanças, trouxeram benefícios inimagináveis.
Manter a essência do que conhecemos por humanismo médico é um desafio constante. Ao contrário do que apregoam alguns, a Inteligência Artificial poderá servir de otimização de tempo para o toque, o aperto de mão e o acolhimento de quem procura resposta para o sofrimento e o medo. As novas gerações devem se habilitar para essa nova realidade.
Na medicina ou em qualquer outra área, cabe aos novos velhos a oportunidade de aprender, ensinar e se adaptar. Com tolerância e boa vontade, deixar algo a ser carregado na mochila do aprendiz que trilha adiante os mesmos caminhos. Assim será possível imaginar o brilho na face das futuras manhãs.
Foto da Capa: Montagem / Ilustração de Norman Rockwell
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