– Tens escrito? – Ela me pergunta após ouvir as orientações que eu dera a propósito daquelas deformidades nos dedos que tanto lhe preocupavam e de mecanismos reconhecidos para explicar e tentar atenuar uma dor crônica, de localização periférica, mas de origem também central.
– Sempre – respondi, num gesto automático de afirmação, mas que logo corrigi: – Pouco, não ando muito inspirado. – Também mais crônicas do que contos – complementei. Sem intenção alguma de fazer ironia naquele jogo de palavras.
– E tuas crônicas são datadas? – mostrava-se interessada. Acredito que não – respondi.
O diálogo, talvez mais uma provocação, um estímulo de uma leitora generosa, ficou martelando o resto do dia, a semana e durante o feriado. Textos datados tornam-se anacrônicos, estão mais para matéria jornalística do que literatura. – Será?
Pela janela do escritório, avisto o ninho de sabiás nos galhos da pitangueira. Três filhotes prontos para enfrentar o mundo.
O que restará desse tempo, esse exato momento em que busco inspiração para escrever e não consigo me desvencilhar de pegajosas mensagens que digladiam entre alertas anti-satânicos e messiânicas elegias?
Um dia isso também ficará datado? Que estranha atualidade nas notícias que chegam dos Balcãs, na construção de muros, na serena contemplação dos movimentos de refugiados, na expatriação sumária, na expiação das gentes, em miasmáticas ideias fascistas, no triunfo da mentira e da arrogância, enquanto continua em velado silêncio o que acontece no continente africano e em tantos outros lugares providencialmente ignorados?
Enquanto o universo cabe numa casca de noz, a imbecilidade se permite colossal e dança fervorosa numa desenfreada necessidade, quase um dever, de expor “verdades” e ai de quem ousar divergir. E é só o que tenho lido. E ouvido.
A cada manhã espero a chamada, em caixa alta, letras garrafais: “Assassinado o arquiduque Francisco Ferdinando e sua esposa, a duquesa Sofia de Hohenberg”. – Que século, que ano nós estamos?
Talvez seja influência de uma sensação de perda, do vento que caracteriza a época de Finados ou da explicação dada para os mecanismos da dor, que a minha paciente escutara com toda atenção: – Isso vem da época da Guerra Civil Americana, confederados contra imperialistas, escravagistas versus abolicionistas. O sul e norte de uma mesma nação, só em ferimentos se igualavam.
Um prato cheio, mesmo que de sangue, para a evolução da medicina. Cortavam-se pernas e braços para tratar infecções, evitar gangrenas e, muitas vezes, apenas arremedos paliativos.
Naquele cenário, o cirurgião Silas Weir Mitchell (1829-1914) criou o termo “dor no membro fantasma”. Uma dor com localização em partes do corpo que já não existem. O conceito foi descrito pela primeira vez no Século XVI, pelo francês Ambroise Paré (1510-1590). Mas foi graças a absurda frequência de amputações, gentilmente produzida por aquela guerra entre irmãos, que o conceito se espraiou.
É um pouco isso que sinto, uma dor de ausência, uma dor fantasma. Medo, talvez, nesses dias que estranhamente me parecem nada atuais. E não me venha alguém impor sua visão de mundo a querer julgar sentimento e percepção. Que se reserve a cada um, o direito pelo menos de refletir com suas próprias vivências, visões de mundo, acervo de histórias e arquivo de leituras.
Ao alcance da mão, da estante colho um poema, escrito numa velha folha de papel almaço. Já não lembro quando foi copiado, mas reconheço-me naquela caligrafia e leio-o em voz alta.
Versos finais do Cântico Negro, do português José Maria dos Reis Pereira, mais conhecido por José Régio (1901-1969), publicado em 1926, ressoam:
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios…
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios…
Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios…
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios…
Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: “vem por aqui”!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou…
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: “vem por aqui”!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou…
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!
Na parede, em tons pastéis, a litografia: “Ponte Sant’Angelo” (ao fundo, imponente, a Basílica de São Pedro). Lá fora, o casal de sabiás se reveza, trazendo no bico contínuo alimento para a prole. Dobro com cuidado a folha que guarda a poesia.
Sobre a escrivaninha, o livro “Folhas de Relva”, é nele que tentarei aquietar-me. Abro-o e antes de aninhar o papel dobrado, leio um trecho, sorteado pelo acaso:
Procurarás na distância? Certamente retornarás, ao final.
Nas coisas mais próximas de ti, encontrarás o melhor ou algo tão bom quanto o melhor.
Nas pessoas mais próximas de ti, acharás as mais doces, as mais fortes, as mais amáveis.
Felicidade, conhecimento, não em outras paragens, mas aqui, não no futuro, mas hoje…
Nas coisas mais próximas de ti, encontrarás o melhor ou algo tão bom quanto o melhor.
Nas pessoas mais próximas de ti, acharás as mais doces, as mais fortes, as mais amáveis.
Felicidade, conhecimento, não em outras paragens, mas aqui, não no futuro, mas hoje…
Na capa do volume manuseado, a imagem de Walt Whitman (1819-1892), o grande poeta da Secessão americana, olhos claros, barba volumosa, parece acolher o gesto com serena aprovação.
Foto da Capa: Litografia “Ponte Sant’Angelo”,de Suzel Neubarth / Acervo do Autor.
Todos os textos de Fernando Neubarth estão AQUI.