O Milton Golbert é endocrinologista. Foi meu professor em priscas eras na então Fundação Faculdade Federal de Ciências Médicas. Eu não era muito interessado em endocrinologia. Mas, como um bom hipocondríaco, também não era pouco. Prestei razoável atenção nas aulas sobre a tireoide e cheguei a achar incrível os opostos de seu funcionamento. Sobre diabetes, não lembro nada do que possa ter estudado. Mas recordo que conversei muitas vezes com o Milton, um sujeito sorridente que sempre perguntava pelo meu pai, de quem era amigo. Eu o mantinha razoavelmente informado, o que não era difícil, diante de um pai que vivia contando – e protagonizando – histórias.
A vida pode ser uma narrativa meio estranha, com personagens que vão entrando e saindo sem prestar contas ao sentido, e dando provas suficientes de que, em havendo um Ser Supremo que a escreve, este não seria um narrador dos mais coerentes. Mas não se trata aqui de tema tão polêmico e, sim, de que poucas vezes encontrei o Milton, nos últimos 40 anos. Vimo-nos, recentemente, nos funerais de outro grande contador de histórias e amigo do meu pai, o querido Oscar Glusman. O Milton se aproximou de mim durante o velório e disse que vinha, há muito tempo, pensando em me oferecer um livro. Era a Divina Comédia, do Dante, agora que havia chegado à convicção de que não pretendia enfrentar o calhamaço poético, mas me via como alguém capaz de fazê-lo.
Foi quando contei a ele que havia enfrentado o livro uma primeira vez, justamente quando deveria estar estudando sobre o pâncreas e, desde então, nunca mais o fizera. Por coincidência, estava há horas pensando em uma releitura, graças à convivência com o poeta Armindo Trevisan, outro amigo do Oscar Glusman, e um especialista de primeira linha em Dante, sobre o qual publicou um belo livro. Precisávamos ver agora se a edição do Milton era a mesma que eu tinha, caso contrário seria mais justo encontrarmos outro felizardo para a doação.
Faz pouco, o Milton deixou o livro no meu consultório e a edição é outra. Eu tinha lido, nos anos 80, a tradução do Cristiano Martins, da mineira Itatiaia, e a do Milton foi feita pelo Xavier Pinheiro, pela paulista Martin Claret. Ainda estou no começo do Inferno, sem previsões de data para chegar ao Purgatório e, muito menos, ao Paraíso. Mas não se trata disso. O tema aqui não é a busca de Dante (e Virgílio) pela alma de Beatriz, sobre o que cheguei a escrever um poeminha, durante a minha primeira leitura, onde fizera alusão a um poemão do Kaváfis sobre a busca de Ulisses para retornar a Ítaca, quando o importante não seria chegar a Ítaca, conforme o original do Kaváfis, ou à Beatriz, conforme o meu plágio. O fundamental era a busca e sua viagem. O nosso tema, aqui e agora, é o gesto amoroso e singelo de um ex-professor capaz de pensar em seu aluno para lhe doar um livro sobre um tema tão diferente daquele que os uniu, há tantos anos.
Penso que a grandeza de um gesto não está na possibilidade de explicá-lo – muito antes pelo contrário –, e sim em poder passá-lo adiante. Falando nisso e em Milton, vi-me pensando para quem doaria o meu exemplar do Paraíso Perdido, do inglês John Milton. Decidi que o farei para o Cláudio Gastal, que foi meu aluno no mestrado de Saúde Coletiva da Ulbra, nos anos 2000. Lembro que tínhamos conversas muito animadas sobre a vida e suas vicissitudes, mas agora só me ocorre pensar que até os paraísos podem ser conservados por alguns gestos simples.
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Foto da Capa: No quadro de Domenico di Michelino, Dante Alighieri segura o livro “A divina comédia”.