Tramandaí, beira-mar. Orla quase deserta. O medo do vírus faz com que raros transeuntes caminhem de máscara, mesmo afastados. Desconhecimento e desinformação. A ciência desacreditada, o descontrole deliberado, a sensação de náusea constante ante o desprezo institucional ao sofrimento.
Um velho, numa cadeira de praia, defronte ao mar. Óculos de sol e a distância não permitem saber se está de olhos abertos ou fechados. Dorme? Não importa. O que é certo é que enxerga a imensidão. As ondas, antes de morrer, beijam seus pés.
Dá gosto rever o oceano. Ouvir o ritmo da maré. Deixar-se invadir por uma sensação de paz. O quebrar das ondas numa cadência que embala. Volto a tempos imemoriais. Sinto-me aninhado e seguro.
Dentre o inventário da casa desfeita, alguns guardados que me couberam de herança. Depois de anos, encorajo-me a examinar papéis amarelados, fotos antigas, boletins escolares, recortes de jornais, cartões de aniversários, páscoas, natais, dia das mães. Tudo cuidadosamente amarrado num pacote, onde reconheço o nó do barbante e a caligrafia característica do meu pai.
No envelope pardo, a identificação: Serviço de Cardiologia Dr. Jayme Domingues e Dr. Carlos Mallmann Filho, Avenida Salgado Filho, 204, 6º andar, Porto Alegre. E os quatro dígitos do telefone: 8758. Uma pasta em tom cinza marmorizado contém dados clínicos de Adélia Robinson Neubarth, procedente da cidade de Taquara. Numerado como caso 12.108 – E. Exame datado de 11 de dezembro de 1959. Realizado por solicitação do Dr. Dirceu Martins.
No relatório, as doze estações de um percurso, estampas do traçado eletrocardiográfico. Imagens ainda bem nítidas das derivações, diferentes ângulos da atividade elétrica: D1 a D3, aVR, aVL, aVF e V1 a V6. Consta ainda que a paciente apresentava pressão arterial básica, após 30 minutos de repouso, de 100 – 60 mm de Hg e referência “aos Raios X”, evidenciando silhueta cardiovascular de configuração e tamanho normais para o biotipo, medidas, diâmetros, calibres dentro dos padrões.
No eletrocardiograma, a descrição do ritmo, ativação auricular, condução auriculoventricular, espaço P-R, ativação ventricular, eixo elétrico, posição, morfologia especificadas. Recuperação ventricular medida. A assinatura do Dr. Jayme conclui o laudo afirmando que se tratava de “aparelho cardiovascular sem alterações de significação patológica (compatível com o período de gravidez)”.
A gestação, no caso, era do quarto entre cinco filhos. Eu. Nasci no quinquagésimo primeiro dia após essa avaliação.
Creio que, a partir desses dados e da atual tecnologia, é possível reproduzir com razoável fidelidade o som que acalentava minha existência intrauterina. Talvez eu possa pedir ao amigo compositor Flávio Oliveira para ler essa pauta e dedilhar ao piano, tenho certeza de que ele saberá interpretar todas as marcações e musicar minha mais remota lembrança de afeto.
Mas não há porquê. Percebe-se, sempre, o fluxo sanguíneo e o som do coração de uma mãe, quando se silencia o mundo e contempla-se o ritmo apaziguador das marés.
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Foto da Capa: Acervo do Autor.