Algo que aprendi com a psicanálise é que a singularidade é um devir que não se confundirá com nada que seja da ordem do particular. O particular é esse individual requerido como mérito, como parte que me cabe no latifúndio – para alguns, todo o latifúndio. É uma célula que faz questão de dizer que somos todos iguais para, logo ali, em uma usurpação, poder dizer que algo nela – um mérito ou eleição divina – a faz ter que se inflar, cancerosamente, atacando as demais células e deixando de pensar coletivamente.
Por outro lado, o grupo nem sempre será o coletivo. Se o grupo pressupõe – como dizia Le Bon – uma mente grupal, essa facilmente pode ser cooptada por um líder, um Trump, um Milei, um Netanyahu, um Führer. Já o coletivo, esse ainda pode apostar em uma sustentação por fora das determinações de um mestre; mantendo sua força singular, seu estilo. É só desse modo que ainda creio possível o trabalho com coletivos de psicanalistas, quer dizer, quando estas e estes se associam no compromisso de não equilibrar o pedestal do mestre. Exercício difícil, porém necessário para que possamos acessar um estilo próprio.
Por fora da psicanálise, é evidente que existem outros caminhos para facilitar esse encontro com o estilo, mas um dos mais potentes – senão, o mais – é a arte. O caminho de uma grande artista costuma ser, por si só, uma obra. Nesse sentido, Lady Gaga é exemplar. Longe de ser super fã de sua música – ainda que me embale com um ou outro tema –, sou admiradora de seu devir artista e de seu ativismo. Um caminho calcado no que, aparentemente, poderiam ser esquisitices, defeitos ou inaptidões. Traços que a artista torce e traz neles a sua legitimidade como criadora.
Lady Gaga fez de sua resistência a entrar na esteira das famigeradas e dançantes artistas pop de sempre, uma marca, uma signatura rerum que repercute em todo o estado da arte. Na música, na moda, na cenografia, na teatralidade etc. A artista que canta no sentido pleno, que compõe o que canta, que dirige e produz muito do que apresenta é o resultado de talento, estudos, alguns nãos e insistência em crer que só podia ser o que já era. Se Nietzsche nos diz: Torna-te quem tu és; Gaga nos responde: Born this way – nasci desse jeito. Aliás, este é o nome da fundação que mantém, com sua mãe, para o bem-estar em saúde mental de jovens e adolescentes.
Depois do arrebatamento do último sábado, dia do mega espetáculo em Copacabana, cercada por 2 milhões e meio de pessoas, Gaga – uma das maiores divas do público LGBTQIAPN+ – compôs, talvez, o maior ambiente livre de heteronormatividade do planeta. E, adicionalmente, mais patriota do que muitas senhorinhas do tradicional bairro – nos devolveu as cores de nossa bandeira no figurino e colocou corpos diversos dentro da traumática camisa amarela. Que livramento!
Viva a bateria de leques! Viva Lady Gaga! Uma luz em um espelho já cansado de ver a praia de Copacabana abarrotada de machões e gente gagá!
Todos os textos de Priscilla Machado de Souza estão AQUI.
Foto da Capa: Reprodução da TV Globo.