Em junho de 2017, entrevistei por telefone o escritor israelense Amos Oz, que viria falar em Porto Alegre naquele mês, e ele me disse durante a conversa uma frase na qual penso repetidamente desde então: “Eu sou um escritor, trabalho com palavras todos os dias, do mesmo modo que um carpinteiro trabalha com a madeira ou um pedreiro com tijolos. Assim, eu sinto uma responsabilidade para com a linguagem. Penso que muitos dos maiores males deste mundo começam com a corrupção da linguagem, e é meu dever gritar a cada vez que vejo alguém usando uma linguagem contaminada”. Oz estava resumindo o que ele considera um papel essencial do escritor, e penso que seu diagnóstico é muito preciso. Um grande problema no mundo contemporâneo é que cada discurso circunscreve sua própria visão sobre seus próprios fatos, criando assim sua própria realidade e inviabilizando a possibilidade de qualquer “terreno comum” que poderia ser o início de um consenso.
Mas era aí que Oz reafirmava a importância de sua missão como escritor como alguém que se insurgia na contramão, combatendo a erosão da linguagem planejada com fins políticos. Claro, talvez o motivo fosse que eu sou um Zé Ninguém e Oz era um escritor de renome internacional, mas, embora eu concordasse com tudo o que ele disse, me parecia que o exercício dessa missão pessoal por ele ou por qualquer um que tenha se incumbido dela estava se tornando cada vez menos efetiva. Mas ao menos era claro que Oz, por seu lado, estava se dedicando a ela com tudo o que tinha e não pretendia se acovardar diante de sua enormidade. E isso é apenas uma das coisas admiráveis na vida e na obra desse autor tristemente falecido em 2018, e se vocês ainda não leram nada de Amos Oz, vocês deviam corrigir esse problema imediatamente.
E a questão aqui é que eu não paro de pensar nessa frase de Amos Oz desde que comecei a ler as repercussões na imprensa aos ataques realizados por militantes bolsonaristas em Brasília no último dia 8. O diagnóstico de Oz continua certeiro mesmo neste caso que ele não testemunhou e sobre o qual não emitiu qualquer juízo. O delírio bolsonarista também é um delírio de corrupção da linguagem, começada lá na origem, quando essa calhorda sequestrou para seus usos sinistros a expressão “mito”, e segue agora na produção de uma realidade alternativa, um Brasil paralelo em que Bolsonaro é um perseguido no exílio, os atos de vandalismo são obra “da esquerda infiltrada” e um pessoal que passou dois meses acampado na rua tomando chuva na frente de quartel agora se sente num “campo de concentração” porque está guardada num galpão por uma semana.
Campo de batalha
Aqui vou ter de abrir mais dos meus já conhecidos parênteses. Se algum dos meus sete leitores leu a coluna da semana passada, vai lembrar que lá eu havia comentado que era hora de devolver o bolsonarismo à irrelevância não aceitando que pautassem o debate, já que perderam a eleição, e que eu me sentiria muito feliz em nunca mais escrever o nome de Bolsonaro na vida, nem mesmo em seu obituário. Mas claro, havia um limite para essa minha proposta, a ideia, ingênua, admito, de que eles repetiriam as mesmas estratégias de sempre, quando, pautados pelo manual de desestabilização e contra-ataque atualmente em uso pela extrema direita em todo o mundo, os oportunistas no meio do bolsonarismo são muito eficientes em sequestrar a pauta, pela força se preciso, e por isso aqui estamos tendo de outra vez lidar com eles e seu “mito”, já que seus artifícios escalaram e eles conseguiram, de uma forma bem-sucedida, disseminar caos e destruição na capital da República.
A linguagem é um campo de batalha contra a extrema direita, e estou apenas aqui enunciando o óbvio. E é por isso meio constrangedor encontrar a imprensa, a grande imprensa, essa que, apesar de seus tropeços e mortes anunciadas, ainda circula entre uma grande parcela da população, tendo tanta dificuldade para entender isso que está capitulando diante de dilemas que ela mesmo está se impondo. Dar nome ao gado – ops, desculpe, aos bois – e decidir que termo deve ser usado para nomear a turba em ação no domingo é um deles.
É uma dúvida que eu mesmo estou cultivando nos últimos dias. O que são os bolsonaristas e o que foram os distúrbios provocados por eles? Dá para chamar de “golpistas”? Sim, a longo prazo sim, uma vez que tudo o que eles têm feito desde o fechamento das urnas nas eleições de 2022 tem um objetivo último: a anulação da eleição com a permanência no cargo do seu candidato derrotado, subvertendo, portanto, por meio de um golpe, o próprio processo eleitoral. É um golpe o que eles querem, essa é uma lógica inescapável. Ao mesmo tempo, e aqui não quero dar uma de Demétrio Magnolli com suas problematizações free style tiradas de algum lugar onde o sol da razão nunca brilha, chamar os bozolóides de golpistas é meio que, por consequência, reescrever o conceito de golpe. Ou simplesmente ter de admitir que o bolsonarismo é tão incompetente para dar golpe quanto para distribuir vacinas.
O conceito de um golpe
Um golpe é a tomada, muitas vezes por meios violentos, dos centros de comando e das estruturas democráticas de um país ou território com o objetivo de substituir um governo no poder por outro, de preferência ou de interesse dos golpistas em questão. Como já comentamos, os bolsonaristas querem sim substituir o presidente eleito por um pleito legítimo no fim de 2022 pelo candidato derrotado, mas tudo o que fizeram até agora não parece dar a entender que querem o sucesso de um golpe, ao menos não de imediato.
A horda do fim de semana conseguiu algo que todo golpe adoraria: acesso físico aos e ocupação dos centros do poder na Capital do Brasil. Mas fizeram isso num domingo em que não havia ninguém lá sequer para ser abalado ou feito de refém ou assassinado ou até mesmo substituído. Todos os principais atores responsáveis pelas instituições atacadas ou estavam a milhares de quilômetros, como o próprio presidente, ou em outro lugar. Logo, para que as instituições seguissem trabalhando bastaria uma barraca em algum outro lugar – o “líder” dos golpistas, ou ao menos o líder que os golpistas afirmam querer no lugar do eleito, está atualmente foragido na Flórida, então nem mesmo um “governo paralelo de resistência” poderia ser estabelecido. Se houvesse um pensamento estratégico para além da simples destruição, talvez os golpistas poderiam ter acampado nas dependências ocupadas, resistido e criado um problema político real para as instituições, mas depois de algumas horas de extravasamento por meio de vandalismo, todo mundo voltou pros ônibus pra ir para casa, mostrando que o caos era o verdadeiro objetivo – que talvez eles mesmos não estivessem preparados para o que conseguiram pegando a segurança de Brasília absurdamente despreparada ou negligente.
Vi alguns veículos chamando a turba de “vândalos”, mas esse é um termo que, assim como “patriota” ou “comunista” hoje está meio vazio de significado. Além do mais, é muito genérico para uma situação tão específica. Vândalo também pode ser quem quebra uma vitrine ou arranca a poltrona de um estádio após um jogo, e a indeterminação e a simplificação são outros vícios de deterioração da linguagem bastante presentes no atual panorama do discurso público.
Terrorismo
Bom, se o objetivo dos bolsonaristas, como parecia ser o caso, era criar caos e desestabilização, chamar de “terroristas” me parece o mais correto, dado que os atos do grupo escalaram para um patamar acima do bizarro, dando a uma turba meio geriátrica que até uns dias antes era motivo de piada uma nova dimensão. Está aí um exemplo bastante ilustrativo do potencial desumanizador das redes, direto na nossa cara progressista (o que não deixa de validar um pouco meu artigo em tudo o mais fracassado da semana passada). Depois de dois meses dessensibilizados pelas risadas constantes provocadas pelas orações a pneus, pelos gritos histéricos diante de portões de quartéis, de gente pendurada em grade de caminhão, fomos lembrados que eles podem ser ridículos, mas que se forem em número suficiente deixados à solta e com permissão de agir, eles podem sim ser perigosos.
Há, sim, claro, os que continuam chamando a turba de “manifestantes” (outra palavra vazia) ou até mesmo de “patriotas”, sem ironia. Estes fazem parte do elemento minoritário, mas ainda mais nocivo dentre os bolsonaristas, os oportunistas que jogaram a sensatez às favas em troca de alguma coisa que eles obtêm com a adesão. Seja o reconhecimento obtido por figuras que antes estavam relegadas à mediocridade de um obscurantismo merecido seja por um grande tropeço político seja por total incapacidade para voos mais altos.
Sobre isso, aliás, talvez um dos exemplos mais tristes de aviltamento da linguagem demonstrado pela grande imprensa, uma instituição que precisa de coragem, mas é composta por um bando de gente covarde pra caramba – foram as insistentes tentativas de pontuar que os baderneiros “eram, repito, uma minoria”. Isso é invertebrado além de qualquer medida. Primeiro, porque, embora possa ser amparado no simples pensamento estatístico (é impossível que assim não seja), é uma tentativa desesperada de não desagradar os leitores e anunciantes à direita que ainda existem na grande mídia. Não cabe ao jornalista no momento de uma cobertura tão delicada como essa comprometer a pouca credibilidade que profissão ainda tem para se lançar numa defesa vazia da qual ele sequer tem provas…
Nem todo mundo que votou no Bolsonaro estava em Brasília, é uma realidade matemática. Nem todo mundo que votou no Bolsonaro pode ter querido o resultado que se viu no dia 8. Muitos simplesmente aceitaram o resultado e seguiram com sua vida. Nem todo mundo que votou no Bolsonaro talvez o quisesse como presidente, mas votava mais impulsionado pelo que não queria, a volta do PT, do que pelo que admitia querer – claro, há todo um outro nível a ser discutido de aceitação necessária para saber de tudo o que Bolsonaro fez, disse, falou, agiu, omitiu e ainda assim continuar achando que ele é só “mais um candidato”, mas esse é um outro debate para outro momento. Mas quem votou no Bolsonaro, acampou em quartel por dois meses, espalhou um número incessante de informações falsas sobre o processo eleitoral, foi de ônibus a Brasília, essa turba era sim composta em grande maioria por gente disposta a trabalhar pela desestabilização institucional, por um golpe no fim do processo, pelo terrorismo se tiver oportunidade. Ver meus colegas de profissão já assustados querendo posar de isentões no exato momento em que o fascismo tupiniquim criador de fanfics revelou sua verdadeira cara é, para mim, uma tristeza.
Mas, tendo trabalhado em redações nos últimos 30 anos, não posso nem dizer que é uma surpresa.