A dependência assusta. Conheço muitos que buscam a independência, prezam por ela, lutam por ela, e não têm tanto medo da morte quanto de ficar dependentes. Mas quem realmente é independente?
Quando observamos os alimentos, podemos perceber essa relação de dependência mútua. Alguém aqui produz seu arroz, feijão e farinha, por exemplo? Cria suas galinhas ou possui seu gado no pasto? A ideia de independência é uma ilusão.
A água que você bebe é comprada em garrafa, garrafão, vinda do filtro ou diretamente da torneira? Em qualquer desses casos, dependemos de uma infinidade de processos e de pessoas para chegar até nosso copo. A ideia de independência é, novamente, uma ilusão.
O que são as emergências climáticas que estamos observando senão uma reação em cadeia que dependeu da ação humana para ser iniciada e que dependerá da ação humana para ser mitigada? Onde está a independência nisso?
Cada um de nós dependeu de um óvulo e de um espermatozoide para estar aqui. E os filhotes da espécie humana são os que, entre os mamíferos, mais tempo levam para conseguir sobreviver sem seus cuidadores.
Somos seres sociais, não é à toa que a solidão dói tanto quanto uma dor física. Dependemos do vínculo, das conexões sociais para viver mais e viver melhor.
O cuidado da maternagem está compreendido como fazendo parte da economia do cuidado. Porém, para além da mãe, grandes sobrecarregadas, e da rede familiar (quando existe), é necessária a tomada de consciência de que o cuidado de nossas crianças depende também de toda a sociedade e do Estado integrados e solidários. Acredito que essa semente já tenha germinado, apesar das grandes necessidades e desafios a esse respeito.
O envelhecimento natural humano causa várias mudanças físicas, incluindo alterações como a perda de densidade óssea, que aumenta o risco de osteoporose e fraturas, declínio da visão (presbiopia, catarata), audição, paladar e olfato, diminuição da capacidade pulmonar e da eficácia do coração. Esses, entre outros efeitos, podem ser retardados, diminuídos, mas, de acordo com a herança genética, estilo e acontecimentos no curso de vida, irão se manifestar em maior ou menor grau. A simples visão desse declínio pode ser assustadora para muitos.
E essa parte do caminho, em especial, também pode significar para muitas pessoas a necessidade de cuidado e momento de depender de alguém, seja um cuidador familiar ou profissional. Mesmo que tenhamos passado a vida inteira dependendo de outros sem ter tido essa consciência. E assim como já estamos consolidando com relação à infância, é hora de nos darmos conta de que o cuidado com nossos velhos não deveria depender apenas das famílias, mas precisar ser uma responsabilidade coletiva. Algo que, apesar de estar em Lei, não encontra eco na nossa cultura, pois ainda enxerga o cuidado com a velhice como uma responsabilidade individual e familiar.
Se houvesse a participação coletiva da sociedade e do Estado no cuidado de pessoas dependentes (vale lembrar que não só as envelhecidas são dependentes), a sobrecarga de cuidadoras, e aí precisamos conjugar no feminino porque a grande maioria é mulher, seria mais justa porque infinitamente menor. O que, para as pessoas cuidadas, representaria um melhor tratamento.
Aí há uma dimensão íntima que quem depende de cuidados, ou dependeu, já se deparou. É o permitir-se ser cuidado. Não é fácil. Certa vez, fiquei internada por sete dias na UTI, onde precisei ficar imóvel e lá senti na pele as dificuldades e desafios de ter profissionais técnicos e enfermeiros trocando minhas fraldas e lavando meu corpo, precisando me alcançar desde o controle da TV ao prato de comida. Medo, ainda mais sendo mulher, vergonha, raiva, humilhação foram sentimentos que afloraram e precisei reconhecer e lidar para deixar ir e deixar vir a gratidão, a gentileza, o bom-humor, a humildade.
Agora, em que ouço tantos reclamando que estamos muito individualistas e egoístas, penso que se a gente tivesse essa consciência da interdependência mais aguçada, a convivência coletiva seria mais respeitosa e gentil na medida em que conseguiríamos compreender que não estamos nesse mundo passando com o “bloco do eu sozinho”, mas que somos o resultado de muitos esforços ao nosso redor.
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Foto da Capa: Freepik