O discurso de posse do ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, repercutiu bastante, e de forma positiva, nas redes sociais (você confere a transcrição no belo texto da Patrícia Carneiro aqui na SLER). Não quero me gabar, mas eu já era fã do Silvio muito antes de estar na moda. Antes ainda da brilhante participação no Roda Viva (quem não viu, veja) ou dele ser entrevistado pelo Mano Brown. Também, pudera, além de sua obra, indispensável para quem quer estudar o racismo brasileiro, o homem entende de futebol, história em quadrinhos, de música e ainda sabe dançar.
Em seu discurso, Silvio declarou aos trabalhadores e trabalhadoras do Brasil, mulheres, homens e mulheres pretos e pretas, povos indígenas, pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transsexuais, travestis, intersexo e não binárias: vocês existem e são valiosos para nós.
Lembrou ainda pessoas em situação de rua, pessoas com deficiência, pessoas idosas, anistiados e filhos de anistiados, vítimas de violência, vítimas da fome e da falta de moradia, pessoas que sofrem com a falta de acesso à saúde, companheiras empregadas domésticas, todos e todas que sofrem com a falta de transporte, todos e todas que têm seus direitos violados, declarando: vocês existem e são valiosos para nós.
É uma versão 2023, permeada de ancestralidade e interseccionalidade do célebre discurso “I have a dream” de Martin Luther King, a quem reverencia e cita, dizendo que também tem um sonho e que quer sonhá-lo com todo o povo brasileiro. “Eu sonho com um futuro no qual nós já vencemos. Nós somos a vitória dos nossos ancestrais. Nós somos a vitória, também, daqueles que virão depois de nós”.
Ao lembrar que excluídos existem e são valiosos, diferencia-se do governo anterior que negava o racismo, atacava as pessoas LGBTQIA+ e era liderado por um presidente que dizia com orgulho ser o único parlamentar que votou contra os direitos trabalhistas das empregadas domésticas.
Se lembrarmos que a posse da titular anterior da pasta foi finalizada com o coro de “meninas vestem rosa, meninos vestem azul”, temos uma ideia da magnitude da mudança ocorrida na primeira semana de 2023.
Eu conheci Silvio Almeida por sua obra “Racismo Estrutural” que já mostra a que veio, de forma simples e sem pedantismos, em que fala de três diferentes concepções de racismo: individual, institucional e estrutural.
No primeiro exemplo, há uma concepção individualista, que foca o preconceito e não o racismo. Nessa visão, o racismo está ligado ao comportamento da pessoa que o pratica, que tem sua conduta julgada sob o ponto de vista moral. A receita recomendada para combater o racismo por aqueles que compartilham dessa visão é a educação e a conscientização. Afinal, é o ato de apenas um indivíduo preconceituoso.
Já a visão institucional situa o racismo nas relações de poder que conformam as instituições que organizam e governam nossa sociedade. O fenômeno não é visto como uma conduta do indivíduo, mas de grupos hegemônicos que impõem suas regras sobre todos, garantindo suas posições de poder e impedindo que os demais as alcancem.
Assim, as regras fazem com que a predominância de homens brancos nos espaços de poder seja vista como natural, já que “escolhemos” as pessoas por sua “competência” ou porque adotamos métodos que “não “discriminam por raça” como o concurso público. Nesse modelo, mais difuso e sutil do que o racismo individual, evita-se a discussão sobre a ausência de negros nos espaços de poder.
Já o racismo estrutural aponta que a sociedade se assenta sobre uma estrutura racista social, jurídica e econômica. “O racismo”, na visão do ministro, “é uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial ao qual pertençam.”
As pessoas e instituições sociais não criam, mas reproduzem o racismo, que é uma relação de poder em que um grupo concentra riqueza, mas também bens imateriais, como a beleza, conforme aponta Gisele Tertuliano em sua coluna “Identidade negra na estética” ou a Patrícia Carneiro em sua coluna “Beleza Black Power: a sensível relação com o cabelo”, ambas publicadas aqui na SLER.
O racismo, ao ser parte integrante e dominante da estrutura social, impacta todos os campos da vida, seja na educação, no trabalho, quando homens e mulheres negras ganham menos que homens e mulheres brancos ou na possibilidade de ser alvo de violência policial, ser punido na escola ou de receber anestesia no trabalho de parto.
O racismo influencia até mesmo as relações afetivas como lembra Djamila Ribeiro em seu texto sobre a solidão da mulher negra ou Patrícia Carneiro ao rememorar, de forma sensível e delicada, os relacionamentos amorosos e afetivos de seu pai, na coluna “Pelé, meu pai e suas filhas”, publicada aqui na SLER.
Devemos sempre levar em conta que os comportamentos individuais e institucionais tendem a ser racistas em uma sociedade em que o racismo é a regra (como a nossa). Mas dizer isso não é álibi para perdoar infâmias ou não se fazer nada para mudar a realidade. Afinal, não se trata de buscar culpados, mas de assumir responsabilidades. O discurso, a obra e a vida de Silvio nos lembram disso.