O título dessa coluna é o mesmo da música de 1985 do grupo “Ultrage a Rigor”, liderado pelo compositor, vocalista e guitarrista base Roger Moreira. A música foi inspirada na iniciativa do governo do estado do Rio de Janeiro de criar linhas de ônibus conectando os subúrbios diretamente à Zona Sul. Para horror da “elite” carioca, isso facilitou o acesso do povo da periferia às praias, antes quase exclusivas dos moradores de bairros como Copacabana e Ipanema.
A letra é muito engraçada, com versos como estes:
Nós tamo entrando sem óleo nem creme
Precisando a gente se espreme
Trazendo a farofa e a galinha
Levando também a vitrolinha
Separa um lugar nessa areia
Nós vamos chacoalhar a sua aldeia
Pois a “elite”, não só do Rio, mas de todo o Brasil, nunca engoliu essa história de ficar se misturando, e agora pretende se vingar aprovando a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 3/2022, apelidada de “PEC das praias”.
PEC das Praias
Esse projeto foi apresentado originalmente na Câmara dos Deputados em 2011 pelo ex-deputado Arnaldo Jordy (PA) e aprovado pela Câmara em 2022. A seguir foi encaminhado para o Senado Federal, e começou a ser discutido recentemente pelo seu relator, o senador Flávio Bolsonaro, que o abraçou entusiasticamente.
O que a PEC das praias propõe é que se retire da União a propriedade sobre os chamados terrenos de marinha (ver explicação abaixo), transferindo para estados, municípios ou proprietários privados. Inicialmente, na Câmara dos Deputados, houve quem a defendesse por seu “impacto social”, pois permitiria e legalização de comunidades que vivem à beira-mar. O termo comunidade aqui corresponde a ocupações ilegais e não a pescadores, ribeirinhos e demais pessoas que vivem legalmente à beira do mar, de lagos e estuários. As ocupações, em muitas cidades brasileiras, se localizam em áreas de manguezais, onde despejam lixo e esgoto in natura, causando um enorme impacto ambiental.
Na votação da Câmara, até mesmo deputados de partidos de esquerda votaram a favor da proposta, por conta do dito impacto social. O problema social relativo a estas comunidades deve ser resolvido não pela legalização de ocupações ilegais de áreas que deveriam ser de proteção ambiental, mas pelo realocação destas comunidades para locais mais seguros e com a infraestrutura adequada.
O relator Flávio Bolsonaro também procurou defender o que seriam outros benefícios sociais da proposta como a redução do pagamento de impostos pelos proprietários, o ganho do governo com o pagamento para a União de sua parte nas propriedades, e assim por diante. E argumentou que a medida não envolveria a privatização das praias.
Foi um grande erro político. Ele tocou em algo que é muito caro para a sociedade brasileira. O direito de frequentar as praias é quase sagrado para a maioria da população. Nas últimas semanas, verificou-se uma enorme oposição à medida, inclusive da base de apoio do senador. Ele até se propôs a incluir na PEC das praias um texto que garante o livre acesso às praias. Mas não conseguiu convencer ninguém.
Por conta dessa oposição, a PEC das praias está adormecida no Senado. Nenhum senador quer se indispor com suas bases votando a favor de algo tão impopular. Mas não se engane, a pressão da especulação imobiliária e de proprietários de mansões à beira mar pode fazer com que ela retorne, nem que seja de maneira mais disfarçada.
E o perigo de privatização é real, como eu discuto mais abaixo.
Áreas de Marinha
Antes de prosseguirmos, é importante entendermos o que são “áreas de marinha”. Note que o termo é “de marinha” e não, como muitos pensam “da Marinha”. Esses terrenos pertencem à União, e não à Marinha do Brasil, e são para ela que são pagos os impostos relativos ao seu usufruto.
Os terrenos de marinha representam uma faixa de 33 metros a partir da preamar média. A preamar média é a linha atingida pela média das marés altas. O artigo 13 do Decreto 23.643, de 10 de julho de 1934, dispõe que: “constituem terrenos de marinha todos os que, banhados pelas águas do mar ou dos rios navegáveis, vão até 33 metros para a parte da terra, contados desde o ponto a que chega à preamar média”.
A lei determina que esses 33 metros sejam medidos a partir da premar média registrada em 1831. Ou seja, como a linha de costa é dinâmica, e o nível do mar está subindo, a extensão dessa faixa é variável. Já vi alguns advogados celebrando que em alguns lugares, como o mar subiu, as propriedades dos seus clientes já estariam fora do limite estabelecido pela lei. Esquecem que se o mar continuar subindo em breve seus clientes vão perder suas casas!
De qualquer forma é uma faixa estreita, que não protege de maneira adequada os ecossistemas das regiões costeiras, como veremos a seguir.
Privatização das Praias
Antes disso, uma observação. Apesar da insistência do relator e outros interessados em aprovar a “PEC das praias” dizendo que ela não permitiria a privatização, e mesmo com os dispositivos adicionados pelo relator depois de se dar conta da impopularidade da proposta, muitos juristas ressaltam que ela deixa sim, espaço para que os proprietários cerquem as praias e dificultem ou mesmo impossibilitem o acesso a elas, eventualmente cobrando por isso.
Imaginem a situação. O sujeito pode estender a cerca de sua propriedade até a preamar média, ou seja, até a linha da maré alta, o que faria com que, durante boa parte do dia, o acesso à praia esteja bloqueado. E se você adentrar ali na maré baixa, tem que tomar cuidado, pois se a maré subir você pode ser acusado de invadir uma propriedade privada!
E quem vai fiscalizar? Quem vai determinar qual é a preamar média de cada ponto no litoral do Brasil? E, se for mantido o limite da preamar de 1831, a coisa fica mais difícil ainda! Esse é o tipo de situação que o Congresso quer impor aos brasileiros.
Degradação Ambiental da Zona Costeira
O litoral brasileiro tem mais de 8 mil quilômetros de extensão e uma rica diversidade de ecossistemas. A zona costeira é definida como a área do litoral que representa a transição entre o mar e o continente, ou seja, sofre influência dos processos de ambos os ambientes como, por exemplo, a ação das marés.
A zona costeira, portanto, é muito mais larga do que os 33 metros previstos na legislação. Seus ecossistemas mais comuns são restingas, estuários, manguezais e restos de uma extensa mata nativa que foi em grande parte destruída. Ela pode, portanto, pode ter muitos quilômetros de extensão lateral, como é o caso da planície litorânea do Rio Grande do Sul (dominada por restingas), das baixadas Santista e Fluminense (dominadas por manguezais – em grande parte já destruídos), e das planícies de maré das regiões Nordeste e Norte do Brasil.
De todos os ecossistemas, os manguezais são aqueles cuja perda tem sido, e será, mais devastadora. Além de constituírem em si um ecossistema riquíssimo (que serve da subsistência para muitas populações), os manguezais são verdadeiros berçários da vida marinha. Muitos peixes que, quando adultos nadam em mar aberto (incluindo várias das espécies de maior valor comercial) iniciam suas vidas nos manguezais. Sem os manguezais, boa parte dos peixes de todo o mar poderão desaparecer.
Cerca de metade da população brasileira mora próximo à costa. Somente 10% das áreas costeiras são protegidas por reservas, parques naturais e áreas de proteção ambiental. As áreas de marinha, apesar de pertencerem à União, não têm garantido a proteção dos ambientes naturais. Segundo estudos recentes, cerca de 80% das áreas costeiras do país estão ameaçadas pela ocupação e poluição urbana e industrial, e pelos efeitos das mudanças climáticas.
Recuperar os ecossistemas situados em áreas urbanas é complicado, mas será necessário para se prevenir tanto inundações quanto os efeitos da subida do nível do mar. No entanto, as maiores preocupações no momento são a especulação imobiliária irresponsável e a aquicultura em áreas ainda preservadas.
Especulação Imobiliária
O Brasil tem um enorme potencial de turismo, com seu litoral de paisagens paradisíacas, clima agradável, e praias, lagoas e estuários que estão entre os mais belos do mundo. Esse potencial pode ser explorado respeitando-se a natureza. Afinal, ninguém quer fazer turismo ou passar o veraneio em um lugar degradado.
Mas não é isso que acontece. A história é bem conhecida. Constrói-se uma casa, um condomínio ou um resort em área de vegetação nativa, algumas vezes não respeitando áreas de proteção ambiental, cria-se um aparente ambiente sustentável, escondendo coisas indesejáveis como saídas clandestinas de esgoto ou uma enorme quantidade de inseticidas e outros venenos usados para “proteger” os moradores, que a partir daí reclamam que “os outros” (sempre eles!) não estão respeitando o meio ambiente.
E assim já se destruiu boa parte dos ecossistemas do Sul e do Sudeste do Brasil, e agora é o Nordeste, com seu longo litoral e extensas áreas com ecossistemas ainda originais, que está sendo submetido a uma especulação imobiliária desenfreada. Faça uma pesquisa na internet, e você poderá constatar quantas áreas pristinas da costa estão sendo alvo de gigantescos projetos imobiliários. Você pode até comprar, por um preço módico, o direito de usar uma unidade em um “belíssimo” resort em frente à segunda maior barreira de corais do mundo! Um lugar onde, pela sua importância para o Brasil e o mundo, deveria haver um parque nacional, e não estar nas mãos da iniciativa privada.
Aquicultura
Não fosse apenas a especulação imobiliária, muitos empresários estão se dando conta que criar peixes e crustáceos é mais vantajoso do que se arriscar numa pesca cada vez mais incerta, já que a vida marinha está sendo destruída em nível nunca visto1. Grande parte dos peixes e moluscos consumida no mundo já é produzida em cativeiro.
No Brasil, o maior problema é o crescimento da carcinicultura (criação de camarão). Globalmente, as fazendas de camarão já destruíram 40% dos manguezais. A carcinicultura cresceu cerca de 30% no Brasil de 2020 a 2023.
Ela pode ser praticada com sustentabilidade, ou seja, preservando-se os ecossistemas. Mas o fato é que tem sido desastrosa também para nossos manguezais. Segundo vários estudos, a destruição dos manguezais no Brasil pela carcinicultura já superou os 50%. Mais, portanto, que a média mundial.
Se pode piorar, por que melhorar?
Esse parece ser o lema do atual Congresso. Leis que criminalizam as vítimas de estupro, criam despesas sem contrapartida de arrecadação, ou escondem a destinação de verbas públicas têm deixado pelo menos uma parte da sociedade horrorizada. Perto delas, a famigerada PEC das praias parece até coisa pequena. Mas suas consequências podem ser muito maiores do que uma rápida análise permite.
As áreas costeiras e seus ecossistemas não apenas suportam toda a população que ali vive, provendo água, solo firme e boa parte dos alimentos por ela consumidos, como tem resistido teimosamente às muitas agressões que lhe são impostas pela ocupação humana. Sua preservação é fundamental para a manutenção de uma série de atividades econômicas, controle da poluição e preparação para os eventos climáticos extremos.
Os ecossistemas costeiros poderiam ser preservados e recuperados, para usufruto de toda a população. Para isso seria necessária – e urgente – a criação de uma espécie de Plano Nacional de Recuperação e Preservação das Áreas Costeiras, coordenado pelo governo federal em articulação com estados, municípios e demais segmentos da sociedade.
E o nosso Congresso o que faz? Na contramão dessa urgente necessidade do país, propõe a PEC das praias!
1Veja mais detalhes sobre a destruição dos ecossistemas costeiros e marinhos no meu livro “Planeta Hostil”. O livro, que descreve de forma abrangente os processos de degradação ambiental do planeta, pode ser adquirido em livrarias físicas e online de todo o Brasil, no site da editora Matrix e na Amazon.
Observação final: para vídeos e textos adicionais confira também meu Instagram @marcomoraesciencia.
Foto da Capa: Fernando Frazão / Agência Brasil
Mais textos de Marco Moraes: Leia Aqui.