Como já é bastante conhecido, a trama do filme “Nosferatu” (2024), dirigido por Robert Eggers, é baseada no romance Drácula, do escritor irlandês Bram Stocker. Um dos pontos que mais chamam a atenção do espectador logo no início do filme é a angústia de Ellen, interpretada pela atriz Lily-Rose Depp. Uma jovem atormentada por pesadelos e crises de epilepsia, que após um curto período de tranquilidade experimentado no início do casamento, se vê novamente na iminência do retorno de sua enfermidade com a viagem do marido Thomas Hutter, vivido por Nicholas Hoult, enviado ao exterior para realizar a venda de um antigo casarão.
Sem ter consciência de que está sendo vítima de uma armadilha orquestrada pelo próprio chefe, Thomas parte para a distante Transilvânia, numa viagem que o faz manter contato com diversos elementos das crenças populares da Europa Oriental, costumes esses que considera sinistros, como quando assiste a um grupo de ciganos desenterrarem um suposto vampiro. Porém, o maior choque acontece quando ele encontra o Conde Orlok (Bill Skarsgard), um nobre solitário de aspecto sinistro. Após perceber que está diante de uma criatura sobrenatural, Thomas, já muito debilitado e assim como a esposa assombrado por pesadelos, decide deixar o castelo, porém é mantido como prisioneiro do conde e tenta de forma desesperada escapar, enquanto o vampiro põe em prática o seu plano de viajar para Alemanha e se encontrar com Ellen.
Embora seja inevitável fazer comparações entre “Nosferatu” (2024) e o “Drácula de Bram Stocker” (1992), podemos perceber que existe uma série de diferenças entre as duas adaptações cinematográficas, principalmente no que tange à natureza do relacionamento dos protagonistas. Se no filme dirigido por Francis Ford Coppola o vampiro atravessa a Europa para reencontrar aquela que ele acredita ser a reencarnação da sua noiva, no filme de Eggers a jovem e o vampiro estão unidos por um pacto feito pelos dois quando Ellen era ainda uma adolescente. Em nenhum momento temos o romantismo do filme de Coppola, presente em cenas como a que o casal se conhece pelas ruas de Londres, ou ainda em momentos quando os dois se encontram e bebem absinto. No filme de Eggers, há somente uma obsessão sexual, não há qualquer demonstração de sentimentos por parte dos personagens, é como se os dois andassem juntos rumo à destruição.
À medida que o vampiro se aproxima, a saúde de Ellen se torna mais frágil e é nesse agravamento das crises que temos as cenas mais aterrorizantes do filme. A atriz consegue fazer do próprio corpo um instrumento para trazer ao público todo o medo que a personagem está sentindo. Através da expressão aterrorizada em seu rosto e de seu corpo que se contorce diante de todos numa agonia que parece não ter fim, podemos entender toda a gravidade de ser uma mulher durante a Era Vitoriana, principalmente quando essa mulher não se encaixava nos padrões de normalidade da época.
Outro aspecto importante a ser considerado a respeito da personagem é a culpa que ela carrega durante toda a história. Em diversos momentos ela se sente culpada por ter atraído a criatura para a cidade, mesmo tendo a consciência de ser ainda uma criança quando fez o pacto e de ter atraído a criatura de forma quase acidental, pois a ligação entre os dois ocorreu em um momento em que a personagem se sentia extremamente sozinha e implorou a qualquer entidade que pudesse ouvi-la que lhe fizesse companhia.
Com o agravamento de sua condição física e psicológica, Ellen é mal compreendida por outros personagens, como a amiga Anna Harding (Emma Corrin), uma jovem mulher que pertence a uma família abastada, passando a ser discriminada por Friederich, marido de Anna, que em alguns momentos chega a ofendê-la, justamente por sua condição mental inexplicável pela medicina. Pois como disse o Prof. Von Franz, personagem de William Dafoe: “A luz da ciência cegou mais do que esclareceu os nossos olhos para as coisas que fogem da razão.”
Portanto, podemos assistir a esta nova versão do clássico do cinema expressionista sob diversas perspectivas: podemos dar o foco ao terror, pois o filme em diversos momentos traz cenas dignas das maiores obras do gênero. Podemos também pensar no dilema da humanidade diante do desconhecido e de todo o estranhamento que isso acarreta. Porém, na minha opinião, “Nosferatu” é um filme sobre a agonia de uma mulher que precisa sufocar os próprios desejos e, principalmente, os próprios medos, para que a sociedade não a aniquile.
Fernanda Mellvee, natural de Porto Alegre, é escritora, tradutora e professora de literatura, formada em Letras, mestra em Teoria da Literatura e doutoranda em Escrita Criativa pela UFRGS. @fernandamellvee
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