Escrevo esta coluna tendo me aproximado um ano mais do meio século de vida – e posso referendar que, por mais que isso seja reforçado pelo discurso por todo mundo, e por mais que os jovens se considerem especialistas em drama e perda e até luto, a dimensão real desta verdade só ocorre após uma certa idade em que ela não é mais aceita de um ponto de vista intelectual, mas vista e testemunhada em uma dimensão pessoal. Digamos que seja uma daquelas verdades que todo mundo sabe – e sabe que sabe – mas que só se entende por completo à medida que muitos “universos” à sua volta já foram perdidos de modo inapelável. Toda perda é um universo, mas para quem fica é muito claro que cada morte alheia é mais uma etapa gradual da morte de seu próprio universo – de afetos, referências, de formação.
Meu pai morreu há exatas três décadas, quando faltava pouco mais de uma semana para o meu aniversário de 19 anos, e portanto a associação entre uma data e outra se tornou inevitável e nunca desapareceu. Não sou particularmente ligado em datas de modo geral, então quando a proximidade de junho me desperta da minha habitual distração para o fato de que que está próximo meu aniversário, de algum modo desponta também o ferrão da lembrança de que em uma noite de junho de 1993 eu recebi por telefone uma notícia confusa sobre seu atropelamento e me preparei para ir até a cidade em que nasci no dia seguinte e no dia seguinte o que eu recebi foi uma visita de meu tio esclarecendo que eu não iria para ver meu pai no hospital, e sim para seu velório.
Outras perdas
Essa é, não preciso dizer, uma morte de significado e peso incomparável, cada ano que passa acrescenta uma nova camada – quando mais jovem, eu pensava muito na perda de meu pai com ênfase no que ele representava para mim e minha família. Nos últimos anos, não sai da minha cabeça a reflexão de que ele morreu mais jovem do que sou hoje – uma forma de encarar a questão pelo ângulo dele, talvez. Como todo adolescente, eu achava que meu pai havia vivido muito. Hoje me dou conta de quanto estava equivocado.
Mas a questão é que a morte alheia não precisa ser a de alguém com esse tipo de peso inigualável para representar o apagamento de toda uma dimensão do que te constitui como pessoa. Talvez tenha sido a barra pesada da pandemia, esse apocalipse de solidão e negligência em que vivemos imersos nos últimos anos, mas tenho pensado muito – e lamentado mais ainda – a perda de algumas referências fizeram parte da minha formação, mesmo que aqui eu esteja falando de pessoas que nunca vi ao vivo ou com quem nunca mantive qualquer tipo de camaradagem. Pessoas cuja obra, cuja expressão, cujo trabalho artístico esteve em minha vida lá no início, quando eu descobria minhas próprias inclinações como leitor ou “fruidor” (detesto a palavra “consumidor” neste contexto, mas esse papo fica para outro artigo).
Há alguns anos, mais ou menos próximos no tempo, se foram Rubem Fonseca e Sergio Santanna, dois escritores que tiveram papel fundamental na minha formação. Curiosamente, em minha juventude fui um entusiasta por Fonseca e um leitor algo perplexo pelas estripulias formais e experimentais radicais de Santanna, mas com o tempo a literatura deste último foi ressoando ainda mais em mim do que a do primeiro, ou ao menos eu parei de me conectar tanto com os últimos livros lançados por Fonseca. Mas a qualquer momento em que eu pegue para folhear alguns de seus livros mais marcantes para mim, como O Caso Morel, Agosto, Feliz Ano Novo, Lucia McCartney, e nunca consigo ler apenas um trecho solitário, me pegou avançando na leitura como se o tempo não houvesse passado. Muito se questiona hoje a obra de Fonseca em termos temáticos, dado que seu universo é extremamente masculino, tanto na predominância de homens entre seus personagens quanto nas temáticas em volta das quais ele tece sua prosa: corrupção policial, brutalidade, raiva. Mas a discussão temática não pode negar uma verdade muito simples: sua prosa nos melhores momentos é de um vigor e de uma energia inimitáveis (o que não impediu de ele ser imitado para cacete, principalmente ali pelos anos 1980 e 1990).
Metafísica
Fiquei pensando nisso porque nesta mesma semana em que escrevo este texto também foi anunciada a morte de um outro escritor que foi fundamental na minha trajetória de leitor, outro autor, aliás, que apresentou um olhar vigoroso para a brutalidade e que retratou a violência de um modo todo próprio. Só que McCarthy tem algumas preocupações mais amplas do que Fonseca, incluindo as metafísicas.
McCarthy é considerado um renovador do gênero “western” na literatura, uma ideia que não é de todo incorreta, talvez incompleta. Mas realmente ele pegou alguns elementos da literatura e até mesmo do retrato cinematográfico do Western e os revirou do avesso. Seus personagens, como costuma acontecer com os protagonistas das histórias do faroeste norte-americano, são muitas vezes indivíduos rebeldes e voluntariosos, tentando cavar seu próprio caminho na maré contrária de forças tradicionais arraigadas. O que McCarthy expressa em seus livros é que essa rebelião individual, tão cara ao gênero e à próprio autoimagem cultural dos Estados Unidos, está fadada ao fracasso porque nenhum indivíduo sozinho, por mais dotado que seja, tem condições de vencer na batalha contrária a certas forças em ação: a história uma delas, as tradições outras, o poder uma terceira, o mistério ainda outra. Não é a vitória que faz o herói, é a forma como consegue aceitar a aniquilação inevitável.
Nos livros de McCarthy, manter a humanidade e ser derrotado é praticamente um vaticínio. Para lidar com um mundo em que o impulso da violência e a ação de homens monstruosos está por toda parte e sobreviver, é necessário abraçar seu próprio monstro interior e ser ainda mais violento, se possível. Alguns simplesmente não têm a vontade ou mesmo a condição de aceitar esse destino e são liquidados. É, com variações, o que acontece com os protagonistas de Onde os Velhos não Têm Vez, Meridiano de Sangue, até mesmo de seu mais recente livro, O Passageiro, em que ele abandona praticamente qualquer trama que havia ensaiado nas primeiras páginas do livro para apenas concentrar-se nas reações do seu personagem principal masculino enquanto passa a ser minuciosamente esmagado por uma conspiração que cruzou seu caminho por acidente.
O que faz de MCarthy o gigante que foi não é apenas isso, claro, esse é o nível básico da trama, para onde vão morrer as leituras superficiais. McCarthy é incrível também pela forma como maneja a prosa, como consegue ser um verdadeiro hipnotizador com suas frases que casam uma estrutura por vezes tortuosa, de inspiração bíblica, com uma música interna mesmerizante. Há algo ali, sendo dito, mas a forma é também o sentido. Ao contrário do que se pensa de uma descrição imperfeita como esta, McCarthy não é totalmente abstrato, mas tudo isso, essa força metafísica e essa prosa hipnótica, estão a serviço de uma narrativa também muito concreta, que casa de modo quase impossível exuberância e economia, como por exemplo no início de um de seus livros mais “acessíveis”, Todos os Belos Cavalos:
“A chama da vela e a imagem da chama da vela refletida no espelho do aparador curvaram-se e aprumaram-se quando ele entrou na sala e de novo quando fechou a porta. Ele tirou o chapéu e adiantou-se devagar. As tábuas do assoalho rangeram sob as botas. De terno negro, ficou de pé diante do vidro escuro onde os lírios se curvavam muito pálidos no vaso de cristal cinturado. Das paredes do frio corredor pendiam os retratos dos antepassados que ele mal conhecia emoldurados em vidro e pouco iluminados acima dos estreitos lambris. Ele baixou os olhos para o toco de vela rodeado de cera derretida. Pressionou o polegar na poça de cera sobre o verniz do carvalho. Por fim olhou o rosto muito murcho e franzido entre as dobras da mortalha, o bigode amarelado, as pálpebras finas como papel. Aquilo não era dormir. Aquilo não era dormir.
Lá fora estava escuro e frio e sem vento. Um bezerro mugiu ao longe. Ele continuou de pé com o chapéu na mão. O senhor nunca penteou o cabelo desse jeito quando estava vivo, disse.”
Universos
Nunca conheci Cormac McCarthy (foto da capa), claro, sua importância para mim não é a mesma de meu pai, mas de certo modo ele configurava algo parecido: uma parte do que me fez quem sou, do que continua me fazendo quem sou todos os dias. A leitura de seus livros reverberou em mim a ponto de fazer parte de meu gosto estético, e é essa, me parece a verdade obscura por trás da comparação meio gasta de uma vida com um universo, porque ainda pensamos muito na ideia de “um” em vez de “universo”.
Cada universo vivido por alguém de algum modo se relaciona com partes do universo próprio que é a vida de qualquer pessoa. Às vezes sobrepõem-se nesse contato camadas gigantes, as das pessoas que nos são caras, pais, mãos, irmãos, amantes, amigos. Às vezes há essa referência mais distante só possível no terreno da arte, essa bagunça subjetiva sem a qual nós até poderíamos viver, assim como poderíamos sobreviver em condições inóspitas de qualquer tipo, mas que vida triste seria (tivemos um bom exemplo dela nos últimos quatro anos, quando as hordas que desdenham da arte e querem apenas o entretenimento fast-food que as entorpeça ditaram muitas políticas do Brasil recente).
Cada vida que se perde é um universo. E com alguns universos se perde também parte do constitui o nosso próprio, peculiar, único universo interior.
E assim seguimos. Um vazio novo por dia, buscando recompor uma nova inteireza naquilo que sobra à nossa disposição (as memórias dos que amamos e convivemos, as obras dos que admiramos).