Na Grécia Antiga, certa vez, segundo relato do historiador Plutarco, o todo-poderoso imperador Alexandre, o Grande, se postou frente ao filósofo Diógenes de Sínope, sentado ao sol, e lhe instigou a pedir o que quisesse. Diógenes, que vivia em um barril – pregava que o ser humano não necessitava mais do que alimento, água e o mínimo abrigo para viver bem –, respondeu: “Peço que você não tire o que eu tenho”. O imperador retrucou que ele não tinha nada e, portanto, não poderia lhe tirar nada. Ao que o filósofo, então, esclareceu: “Eu peço que você não fique entre mim e o sol”.
O homem nasce apenas com as necessidades da sua constituição física. Todo o resto é produção secundária e voluntária de necessidades. O filósofo Jean-Jacques Rousseau argumentava que a civilização moderna deturpou a condição humana. O homem primitivo se fizera robusto nas florestas, ágil, com os sentidos aguçados e pouco vulnerável a doenças. Era feliz com suas paixões satisfeitas, pois correspondiam aos instintos naturais de sede, fome, reprodução sexual, preservação.
Como já vimos, nosso corpo sabe realizar sua magnífica obra sozinho. E, quando algum problema natural é detectado, tem o poder também de resolvê-lo durante o sono, quando tudo dentro de nós se restaura. Os problemas de verdade começam quando o corpo é exposto a invasões bárbaras, da dita “vida civilizada”. Produtos fake de subsistência e incitações psicológicas que levaram o ser humano a desvirtuar o seu processo de consumo e expor o corpo a doenças.[1] Quanto mais o homem pensava estar satisfazendo necessidades, mais foi se moldando ao hábito de se dedicar a elas, ao ponto de acreditar que isto era a própria vida. Esse fenômeno se avolumou de tal forma, especialmente no capitalismo e com a indústria e sua produção em massa depois da Segunda Guerra Mundial, que se perdeu totalmente a noção do que significava.
O consumo se tornou exagerado e empobrecido, descolado das reais necessidades humanas. As pessoas, agora expostas a toda sorte de estímulos criados pelos meios de produção e pela publicidade, passaram a acreditar que desfrutavam de uma estimulante oferta de opções e que eram livres para decidir o que queriam. Os produtos ficaram associados a ideais de prazer, felicidade e sucesso. O sujeito deseja possuir alguma coisa para alcançar uma realização pessoal ou se destacar na vida social. E passa a trabalhar exaustiva e perigosamente para poder consumir – a indústria farmacêutica provendo remédios de todo tipo para o corpo suportar tal demanda. Assim, o homem não mais consome para viver. Ele torna-se escravo do desejo. O sociólogo Zigmunt Bauman (2001, p. 87) esclarece que tudo numa sociedade de consumo é uma questão de escolha, exceto a compulsão da escolha – a compulsão que evolui até se tornar um vício e assim não é mais percebida como compulsão.[2]
O que já era sinistro ganha novos contornos com o fenômeno da individualização da sociedade, das aspirações, comportamentos e gostos. O filósofo Gilles Lipovetsky[3] afirma que, com a explosão do hiperconsumo, se manifesta um culto hedonista, com uma celebração do gozo, dos prazeres, do escapismo e do entretenimento.
O consumo ganha um significado totalmente novo. Não se trata mais de uma vitrine, para ser reconhecido, valorizado, admirado. Trata-se de uma maneira de sentir e sair do cotidiano, um cotidiano que julgamos cada vez mais pesado, maçante. Há então a necessidade de ter sensações, pequenas novas experiências. O consumo não proporciona grandes experiências, nem todos têm essa opção. Então, o consumo é um substituto, um paliativo, que permite ter a sensação de que algo está acontecendo em sua vida e que dá o gostinho, a sensação de estar vivendo novas experiências. Consumo pelo prazer, pelo bem-estar íntimo. Massagens, talassoterapia, ioga, meditação, etc. Consumo emocional, da experiência. (LIPOVETSKY, 2002/2024)
O mindfulness, por exemplo, ganhou sua versão moderna de meditação profunda como terapia centrada no “eu”, no bem-estar, algo reduzido a uma competência. Ronald Purser já alertava que o mindfulness nunca foi sobre o “eu”; pelo contrário, era uma forma de se libertar das fronteiras do “eu”.
Lipovetsky (2022) destaca um fenômeno macrossociológico como muito interessante: “Vivemos o auge do consumo de flores e plantas em geral, as pessoas gostam de tê-las nas suas casas, e lhes destinam um orçamento considerável, pois é um espetáculo vivo que pode ser apreciado todos os dias.” É uma triste ironia que agora compramos o que nos foi ofertado abundantemente desde que o mundo é mundo. Mas pode ser, também, um indício de esgotamento do modelo hiperconsumista, pois o desejo por flores e plantas remete às nossas raízes de seres da natureza. Gastar dinheiro com um jardim pode ser, assim, um ato simbólico. Os jardins nos conectam ao Paraíso, nos levam ao jardim do Éden, ao nosso interior, à nossa casa. Observar um jardim é se conscientizar da grandiosidade e fibra dos corpos. Para o filósofo Byung-Chul Han [4] as flores são metafísicas.
As flores das rosas-de-natal estão quase congeladas em choque [schockgefroren]. Elas mantêm, todavia, teimosamente, sim, heroicamente, a sua forma e a sua cor. Belos são os numerosos botões brancos na escuridão noturna. Elas trazem o ser ao nada invernal. Nessa medida, elas são metafísicas. Elas transcendem a physis, que está entregue à impermanência. Elas eliminam a melancolia invernal ao resplandecerem. As flores de inverno são sublimes, sim, numinosas. Elas são nuvens de meu jardim. (HAN, 2021, p. 140)
Cuidar de um jardim é sair de si ao encontro com o outro. Por restrito que seja a uma varanda ou mesmo a um vaso na janela do apartamento, no cuidar das plantas, a troca entre corpos funde em pura energia ambos os atores.
O trabalho de jardinagem era, para mim, uma meditação silenciosa, um demorar-se no silêncio. Ele permitia ao tempo se demorar e exalar. Quanto mais trabalhava no jardim, mais respeito tinha diante da Terra, de sua beleza encantadora. Nesse meio tempo, fiquei profundamente convencido de que a Terra é uma criação divina. O jardim me levou a essa convicção, sim, à compreensão que se tornou para mim agora uma certeza, que adquiriu um caráter de evidência. Evidência significa, originariamente, ver. E eu vi. (HAN, 2021, p. 10)
Sim, podemos ver, em singelos momentos, como, por exemplo, ao deitar na grama do jardim ou de um parque, de barriga para baixo, e ficar observando a vida ao alcance dos olhos. Tanta coisa acontece ali: corpos minúsculos, como das formigas ruivas, em compenetrada atividade no caule da florzinha rosa, ou as formigas pretas com seus corpos robustos, que vencem obstáculos carregando folhas secas com três vezes o seu tamanho; um tatu bola que caiu de costas e fica agitando seus mil pezinhos, mas logo se enrola, rola e retoma a posição de marcha; a graciosa joaninha que pousa em um trevo e já levanta voo novamente; a mosca varejeira colorida em rasantes barulhentos; o inseto indefinido fazendo uma meticulosa higiene – ou seria uma massagem? –, que envolve movimentos contorcionistas das patinhas traseiras e dianteiras, alisando alternadamente as asinhas e as antenas, etc, etc. É tudo tão suave e criativo, tão satisfatório. Ali, em meio metro quadrado de grama, o tempo se demora e exala. Respiramos, relaxamos, entramos em cadência com os pequeninos corpos.
Em momentos como este, em um jardim ou na praia, como relatou Fritjof Capra, se evidencia a discrepância de buscarmos nos produtos materiais as sensações visuais, olfativas, táteis ou gustativas que nos confortam. As mercadorias não têm esse poder. Fomos enganados. Desbancados de nosso posto de observação. Na modernidade líquida que Zygmunt Bauman definiu magistralmente, nos moldaram para sermos “consumidores”, pois o mercado se alimenta e sobrevive no ciclo de insatisfação, nos criando um apetite insaciável pelo “novo”, por um querer sempre mais. Pois, quando adquirimos esse “novo”, ele logo perde seu “encanto” e lançamo-nos atrás de mais um “novo”.
[1] MOREIRA, Vera. Mulheres, Cérebro, Coração. Porto Alegre: Editora Espírito, 2018. Livro reportagem com informações médicas e históricas sobre como a alteração profunda em nosso estilo de vida, desde a Revolução Industrial, implica em doenças. “Estilo de vida” é o conceito amplo de como nos movemos no mundo, o que implica todo o complexo de nossa saúde individual com seus aspectos físicos, mentais, sociais e espirituais. Entrevistas exclusivas com os médicos Cézar van der Sand, cardiologista, Liana Lisboa Fernandez, neurologista, Miriam Gomes de Freitas, psiquiatra e Kenya Netto, ginecologista.
[2] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. Pág. 87.
[3] LIPOVETSKY, Gilles. Disciplina deste pós-graduação: Consumo: o bem e o mal como duas faces de um mesmo fenômeno. Aula 2 / Partes 2 e 3. (2002 / 2024)
[4] HAN, Byung-Chul. Louvor à Terra: Uma viagem ao jardim. Petrópolis, RJ: Vozes, 2021. Pág. 140.
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Foto da Capa: Flick Art