Na arte, uma obra simbólica desse apetite voraz é a tela Portrait of Picasso (foto de capa), de Salvador Dalí, de 1947. Um busto sobre uma coluna exibe um rosto atormentado. Sai da sua boca uma extensa colher, conectada a uma cabeleira branca sob o peso de uma enorme pedra, a língua despenca queixo abaixo, o nariz deformado se contorce para dentro dos olhos vazados e o ouvido foi suprimido. Sentidos humanos deteriorados pela colher glutona, que está papando nada menos que um bandolim – música, o som que toca fundo em nossas almas. Mas da cavidade entre as mamas, no peito que se liquefaz, brota uma delicada flor branca na altura do coração. E o cérebro, mesmo torturado pela pedra angulosa, é uma bela forma orgânica espiral, que remete à proporção áurea, também conhecida como proporção divina, a representação matemática da perfeição da natureza.
É significativo que Dali tenha pintado o Portrait… em Nova York. Era a primeira vez que visitava o centro mundial do consumismo, resultado da fabricação cada vez mais acelerada de produtos em massa e crédito barato nos Estados Unidos pós-Segunda Guerra Mundial. E ainda de uma indústria do entretenimento que difundia o American Way of Life, inclusive para outros países, vendendo a ideia da felicidade pelo consumo. Salvador Dalí, gênio surrealista, percebe o desatino da voracidade material e pinta a reação do inconsciente, no elo mente/coração, à petrificação dos sentidos. Os artistas surrealistas foram muito influenciados por Sigmund Freud e os conceitos da psicanálise que surgiam na época, encontravam grande inspiração no tema do inconsciente. Salvador Dalí se destacou e obteve o reconhecimento de Freud.[1]
Nos anos 80 do século XX, o artista plástico brasileiro Fernando Baril (1948 – 2023) avançou nessa percepção. Recém-retornando de uma temporada em Madri, onde estudou pintura na conceituada Real Academia de Bellas Artes de San Fernando, Baril começou uma série de pinturas que sintetizava a condição humana como um estado permanente de consumo, se transformando em mais autoconsumo destrutivo. Suas pinturas misturam objetos mortos e seres vivos. Nas palavras da psiquiatra junguiana e artista plástica Miriam Gomes de Freitas[2], com “efeitos desestabilizadores que retratam a desumanização da vida quando submetidos à lógica da mercadoria” (foto). Para José Francisco Alves (2018), curador da maior exposição individual do artista, no Museu de Artes do Rio Grande do Sul, Baril faz uma crônica dos absurdos da nossa sociedade.[3] A atriz e poeta Nora Prado (2023) escreveu que Baril era um crítico eloquente do capitalismo selvagem e da sociedade de consumo, que mostrava as aberrações produzidas pela mesma, adoecida em seus sintomas de narcisismo, egoísmo, solidão e incomunicabilidade. “Expressou de modo provocativo a sua inconformidade e perplexidade com o mundo digital e as transformações sociais e políticas do seu tempo”.[4]
No ensaio The Notion of the Sublime in Creativity and Destruction as Expressed through the Paintings of Fernando Baril, a psiquiatra Freitas reflete como a sua obra nos aponta para uma realidade contemporânea que nos obriga a alterar a própria noção de sublime.
A realidade da vida brota de um mundo de janelas comerciais, com todos os seus desejos sem restrições para satisfazer um sonho acordado de códigos culturais, estado, sinais e representações. Em certas pinturas, o ser humano se torna um hospedeiro desfigurado e/ou um parasita de objetos mortos. Nós já não sabemos se o ser humano incorpora objetos ou vice-versa. Estas pinturas são uma tomografia das relações de poder, status e códigos culturais que constituem os seres humanos, quando submetidos à regra de consumo. O que denunciam é a terra podre de existência sob o pesadelo de um regime totalitário de consumo, de transformar seres humanos em mercadorias com a ‘sensibilidade de um cliente do supermercado’. Embora seguindo a regra clássica da imitação dos objetos imitados, são híbridos monstruosos derivados de um pesadelo de consciência coletiva. Aqui está a sua diferença com, por exemplo, as pinturas de Salvador Dalí: os monstros da imaginação em Baril descem diretamente de shopping centers. Após Lyotard*, eu diria que as pinturas de Baril são uma ofensiva que dá testemunho do poder e da privação da vida humana sob o véu de consumo. O véu apolíneo é a perfeição técnica. Para Burke**, o sublime é uma questão de intensificação, diferentemente do que para Aristóteles***, onde a tragédia é uma questão de elevação. Sublime agora é apenas ser humano. Se antes era a transcendência, chegamos a um ponto em que a própria noção de sublime tem que ser alterada e voltada para dentro, encontrar o sublime na imanência da humanidade, no que está no ser humano. (FREITAS, 2014)
Definitivamente. Ser e não Ter. Não somos “consumidores”. Caímos nessa armadilha do sempre mais, mais e mais. É um problema que descortina também o limite do corpo, pois a estrutura orgânica não consegue acumular ao infinito. Mesmo que o corpo possa se expandir (engordar) até um volume despropositado, chega o momento em que satura e cede. Igualmente no nível psicológico, sendo o burnout de nossos dias uma prova contundente. O apetite voraz, assim, busca satisfação em acumular dinheiro, que não impõe limite, e com esse dinheiro nos tornamos hiperconsumistas. Isso poderá nos conduzir ao abismo, à destruição, conforme Lipovetsky (2022), que sentencia: “Vivemos um excesso com risco de causar uma crise planetária, de criar uma Terra incompatível com a vida.” Milhões de pessoas, e também empresas, já entenderam essa ameaça e cresce no mundo todo um movimento de responsabilidade social e climática, ainda que muitas vezes irresoluto, pois a tarefa é realmente hercúlea. Estamos correndo contra o tempo e precisamos, urgentemente, saltar para uma prática mais ampla, além do discurso. Os donos do capital e do poder resistem, sustentados por suas “hordas de fanáticos, nacionalistas primatas que adoram ter um fuzil nas mãos, amam matar”, como disse o escritor Michel Houellebecq, e vemos muitas coisas piorarem, ao invés de melhorarem. As consequências do aquecimento global explodem no mundo todo e o poder responde com mais guerras hediondas, conflitos e violência em todo lugar – confrontação entre o grupo terrorista Hamas (com apoio do Irã) e o governo mais extremista da história de Israel (com apoio dos EUA) e seus desdobramentos, a devastadora guerra de Rússia e Ucrânia que não tem fim, a escalada da polarização na sociedade e a ofensiva das extremas direitas, que propicia a eleição de políticos controversos, para dizer o mínimo, como Javier Milei, Donald Trump e Jair Bolsonaro e da esquerda radical, com o golpe disfarçado de reeleição de Nicolás Maduro, na Venezuela, etc.
O filósofo Antonio Gramsci já esboçara em seus Cadernos do Cárcere, quando esteve preso nos porões da ditadura fascista italiana de 1926 a 1937, que quando o velho mundo agoniza, um novo mundo tarda a nascer, e, nesse claro-escuro, irrompem os monstros. O sociólogo e filósofo Michel Maffesoli (2022), estudioso da pós-modernidade, diz que existe um desespero inconsciente na oligarquia político-midiática, que esses atores pressentem, não de maneira consciente, que o fim deles está próximo. “Quando isso ocorre, as pessoas se tornam, de certa forma, mais violentas – combate de retaguarda. Isso pode ser considerado o momento de saturação para o poder vigente.[5] Os monstros estão soltos há mais de 100 anos. Não há mais máscaras, nem qualquer ilusão. Tudo está posto e é mais do que hora de superarmos toda essa barbárie. Temos direito à vida, à natureza, à paz, à infância, ao amor.
[1] DALI, Salvador. Portrait of Picasso é uma tela do pintor surrealista, de 1947. É das mais memoráveis de Dalí e objeto de debate até hoje. Alguns acreditam que foi uma homenagem ao artista catalão. Outros a veem como uma provocação e dizem que Picasso teria, inclusive, rompido com Salvador Dalí ao tomar conhecimento dela. Seriam necessárias diversas páginas para comentar Retrato de Picasso, tamanha sua força simbólica. Por hora, vamos nos deter no fato de que Dali amava Picasso, como se pode comprovar através de inúmeros registros sobre a relação dos dois artistas, muitas vezes comparada a de pai e filho. A tela parece mais uma homenagem e mesmo que fosse uma provocação – de acordo com seu espírito irreverente –, ainda assim seria uma provocação altamente criativa e afetiva. O bandolim na colher pode representar, sim, o apetite inesgotável de Picasso, que era um explorador de instrumentos e apreciava ritmos populares, simbolizando seu interesse por coisas e pessoas, arte e política, mas tudo enquanto inspiração, pois vivia imerso em sua produção febril e parece que não se envolvia mais profundamente nem com suas mulheres, nem com seus amigos, o que se evidencia na farta correspondência unilateral de Dalí com o catalão, que nunca respondeu às cartas.
[2] FREITAS, Miriam Gomes. Ensaio “The notion of the Sublime...” na Joint Jung / Lacan Conference, The Divinity School, St John’s College Cambridge, na Inglaterra, em 13.09.2014. Médica psiquiatra, escritora, artista plástica e conferencista internacional – Com formação no Instituto C. G. Jung de Zurich, Suíça, hoje reside em Porto Alegre, no Brasil.
LYOTARD, Jean-François (1924-1998), filósofo francês, desenvolveu o conceito de sublime em seus escritos sobre arte, nas décadas de 1980 e 1990. * BURKE, Edmund (1729 – 1797), filósofo, teórico político e orador irlandês, membro do parlamento londrino, escreveu “Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo”, em 1757. ***ARISTÓTELES (384-322 a.C.), filósofo grego, em seu livro “A Poética” analisou a epopeia e a tragédia – é a obra teórica mais estudada de todos os tempos pela estética e filosofia da arte.
[3] Zero Hora, Porto Alegre, em 25/06/2018, matéria assinada por Luiza Piffero.
[4] Zero Hora, Porto Alegre, em 18/08/2023. Nora Prado escreve sobre o legado do artista gaúcho morto nesta segunda-feira, aos 75 anos: “Sofisticado e universal, Fernando Baril deixou uma obra rica em quantidade e qualidade.”
[5] MAFFESOLI, Michel. Disciplina deste pós-graduação: As ciências humanas como protagonistas do mundo atual, Aula 2 / Parte 3.
Todos os textos de Vera Moreira estão AQUI.
Foto da Capa: Portrait of Picasso, de Salvador Dali