O astrofísico Marcelo Gleiser pondera que não dá para ter crescimento infinito em um planeta finito, é uma matemática simples, e questiona como faremos para redesenhar essa história. Intensamente dedicado à pesquisa no campo da astrofísica, o carioca de Petrópolis sempre foi um observador atento da vida, da natureza, admirado pelo mistério de Ser humano. Depois de décadas de suas atividades como pesquisador, professor universitário nos EUA, palestrante e profícuo escritor, em entrevista ao Projeto Draft[1], diz que pensou em mudar o foco de sua atuação.
Posso escrever livros, fazer podcasts, tudo é muito fantástico e tem um trabalho muito bom e importante de democratização do conhecimento. Mas se você quer impactar a sociedade de maneira mais profunda, talvez seja mais eficiente oferecer um treinamento para líderes empresariais num lugar em que você mexa com as pessoas emocionalmente, intelectualmente, e elas saiam de lá com outro senso de propósito. (GLEISER, 2024)
Foi assim que ele e sua esposa, a psicoterapeuta Kari Gleiser, decidiram fundar, em outubro de 2024, a Ilha do Conhecimento, na Toscana, um espaço de retiros, onde se busca redesenhar nossa história de obsessão pelo crescimento a qualquer custo.[2] Os retiros são destinados especialmente a lideranças empresariais. Segundo Gleiser (2024), essas são as pessoas capazes de impor mudanças, que têm um impacto gigantesco não só nas suas empresas como no mundo em que atuam, sendo que a transformação promovida de cima para baixo percola horizontalmente na empresa inteira e também no âmbito pessoal.[3] Para desenvolver o programa, ele se inspirou no Rei-Filósofo de Platão, que defendia só ser possível uma comunidade ideal se os filósofos fossem reis ou se os reis fossem filósofos. Um Rei-Filósofo é um governante, um líder, que ama a sabedoria e conhece a justiça e o bem, tem o senso de igualdade e pertencimento ao mundo, portanto, não se guia por interesses particulares. Para Platão, a liderança deveria ser destinada a quem se preparou para a função, sendo capaz de conduzir outras pessoas no mesmo caminho. Foi assim que esse filósofo do século III a.C partiu do discurso sobre a educação para a prática, fundando a sua Academia, onde promovia uma formação ética e espiritual para homens e mulheres entenderem que liderar é servir – importante destacar que, na época, a educação era restrita e destinada aos homens, mas Platão desenvolveu seu projeto de forma ampla e gratuita, em que o Estado garantiria esse direito, e abriu sua Academia para as mulheres, que não participavam da vida ativa na cidade-estado. Outro aspecto importante é que a Academia valorizava o filosofar e não o estudo escolar da filosofia. Platão procurava dialeticamente a verdade – a filosofia é matéria, o filosofar a forma, método. O filosofar implica desenvolver argumentos, conduzir processos dialéticos do conhecimento e, ainda, tomar decisões, definir condutas, estabelecer modos de viver, assumir visões de mundo.[4]
Gleiser (2024) diz que fez uma adequação do conceito de Platão para este século XXI, de nosso mundo intensamente polarizado, preso em conflitos ideológicos muito sérios, porque nenhuma empresa, escola ou pessoa pode mais achar que é uma ilha sozinha.
E aqui está a metáfora escondida da Ilha do Conhecimento. Só o olhar superficial percebe a ilha como isolada, pois, embaixo d’água, todas as ilhas estão conectadas pelo planeta; o mar não é barreira e sim o elemento que leva de uma ilha a outra. Nada pode ser tratado de forma isolada, por isso o pensamento sistêmico é essencial no processo de liderança. (GLEISER, 2024)
Lourenço Bustani, da Mandalah, a primeira consultoria global a difundir inovação orientada por propósito, é o parceiro estratégico e curador de conteúdo, e seu sócio e CEO da Mandalah, Victor Cremasco, atua como facilitador – a proposta é participarem anualmente dos retiros. John Fullerton, nome reconhecido na área do pensamento sistêmico, que já foi chamado de banqueiro holístico, integra o time de colaboradores.[5] Na Ilha do Conhecimento, há também cursos livres e Think Tank, com pequenos grupos de especialistas convidados, em diferentes campos da ciência, filosofia, religião e culturas indígenas dialogando sobre os desafios do nosso tempo – dois já aconteceram: Os vários tipos de inteligência: animal, humana, vegetal, extraterrestre, máquina, planetária, emocional e O que é a vida? Uma reavaliação do Século XXI. No final de abril, um novo grupo se reunirá para elaborar o tema Inspiração, transformação e florescimento humano.[6]
O local escolhido é repleto de simbologia e de relevância extrema no contexto da proposta do casal Gleiser: Oratório de Barottoli, no coração da Toscana, nas colinas acima da cidade de Monteroni d’Arbia. É um sítio histórico com uma história fascinante, mágica, profundamente inspiradora. Suas origens remetem ao século XIII, quando peregrinos viajavam de Canterbury, Inglaterra, para o Vaticano, ao longo da Via Francigena, e ali paravam, em uma antiga quinta na aldeia de Radi, para rezar à Nossa Senhora com o Menino Jesus. No final dos anos 1500, um nobre da família Spanocchi ergueu a igreja para abrigar a pintura de Nossa Senhora e uma linda villa adjacente para sua residência e para hospedar os peregrinos. Durante a década de 1600, a popularidade do Oratório cresceu, atraindo multidões de fiéis. Tornou-se o local de 39 milagres, sancionados pelo Arcebispo de Siena, em 1616. No século XX, o Oratório passou a ser a casa de Fabrizio Clerici, famoso pintor, arquiteto e cenógrafo surrealista. Muitos amigos e colaboradores de Clerici passaram a visitá-lo, como o genial Salvador Dalí, que esteve diversas vezes no oratório.
A fisionomia de um lugar, um cenário, uma paisagem, é matéria-prima na composição de nossos pensamentos e emoções. Estar de corpo e alma em um espaço é mergulhar em seus mitos e história, é dialogar com os que ali estiveram, absorver seus sentimentos, sintonizar-se no amar e no sofrer. Quando se quer narrar/criar uma história, por exemplo, é absolutamente indispensável percorrer seu caminho, se deixar impregnar da sua energia. Gleiser fez essa experiência ao escrever o romance A harmonia do mundo[7], em que narra a vida atribulada do matemático e astrônomo alemão Johannes Kepler (1571-1630). Ele diz que seguiu os passos de Kepler na Alemanha, Áustria e República Tcheca, tendo se sentado na mesa em que ele sentava, lido o livro que ele estava lendo, de modo a ir encarnando a vida do matemático e astrônomo. Quando chegou ao Oratório di Barottoli, Gleiser conta que se sentiu profundamente impactado e decidiu de imediato restaurar a igreja para se tornar o local dos retiros, preservando a sua beleza original e as obras de arte, sendo a principal o quadro de Nossa Senhora com o Menino Jesus (foto de capa). Milagre é uma palavra que tem origem no latim miraculum, do verbo mirare, “maravilhar-se”. Neste nosso século tão permeado por individualismo e materialismo, o 40º milagre passível de acontecer no Oratório di Barottoli pode ser as pessoas voltarem a se “maravilhar” com a Vida, ressacralizando sua relação com o mundo e o universo. São experiências imersivas em grupo, e especialmente em lugares simbólicos como o Barottoli, que têm o poder de nos abrir portais. Gleiser parte deste princípio de vivências profundas como forma de chegar ao coração das pessoas – ele considera que uma motivação através do coração pode ser até mais poderosa do que o apelo do bolso, do dinheiro. Ele comenta também que existem exercícios para despertar o senso de humanidade no coração das pessoas, o que Kari desenvolve como psicoterapeuta e serão usuais nos retiros em Barottoli.
O Institute of HeartMath, na Califórnia (EUA), organização de pesquisa e de educação sem fins lucrativos, reconhecida internacionalmente, atesta a ciência do coração. Em uma de suas pesquisas, os cientistas do HeartMath demonstraram que os campos elétricos e magnéticos do coração superam os do cérebro: cerca de 100 vezes mais forte eletricamente e 5.000 vezes mais forte magneticamente. Esse campo do coração envolve todo o corpo e se estende por pelo menos 4,5 metros em todas as direções. Além de ser uma fonte poderosa de energia que diz a todas as células do nosso corpo o que fazer, também interage e é afetado pelo campo eletromagnético da Terra, assim como de outras pessoas, plantas, animais e tudo o que possui qualidades eletromagnéticas, os planetas, as estrelas, o próprio universo. Os cientistas defenderam, assim, que criar um estado de “coerência do coração”, que conecta o coração e a mente, tem impacto sobre nós e quem nos rodeia.[8] É neste campo do coração que somos envolvidos nas experiências imersivas de grupo. Acontece naturalmente, não é preciso qualquer esforço, o que, muitas vezes, permite às pessoas irem a lugares onde nunca foram. O mestre zen Satyaprem[9] comenta que a questão do corpo – traduzindo o coração como corpo – ser muito mais potente do que a mente tem uma razão, porque diz respeito a uma coisa que está sempre no campo presente.
O corpo não conhece nem passado nem futuro, o corpo só conhece o agora, está sempre presente. A mente nunca está presente, ela está sempre no passado ou no futuro. Então, o campo eletromagnético de potência da mente é falho, pois está sempre em outro lugar. O corpo está sempre no agora, está sempre aqui. O corpo é muito silencioso. Se você ouvir o seu corpo, ou se acomodar no seu corpo, você vai notar, existe uma mansidão nata. Com a mente é ao contrário. (SATYAPREM, 2022)
Satyaprem especula que, se você pode medir o campo vibratório da mente e medir o do coração também, constatando que o do coração é muito mais amplo, qual seria o campo vibratório do Ser? Que não é coração nem mente, ou seja, a consciência que somos.
Aí entramos num campo infinitamente mais amplo, a tal ponto que o campo vibratório do Ser é infinito. Ou seja, para o teu Ser não existe limitação alguma. Com a presença do Ser – isso é o que se dá em Satsang – o acesso ao coração se torna muito mais fácil, porque a coisa mais imediata ao Ser é o coração. A mente é mais longínqua. Se você pensa muito, não tem como sentir e muito menos Ser. (SATYAPREM, 2022)
A trajetória de Marcelo Gleiser nos remete à Jornada do Herói, conceito desenvolvido pelo escritor Joseph Campbell, em 1949, no livro O Herói de Mil Faces, ou ao Apascentar do Boi, antigo símbolo do zen, ou ainda à Alegoria da Caverna, de Platão, talvez a parte mais importante do livro VII de A República, no qual Gleiser se inspirou com o Rei-Filósofo. São formulações com um padrão narrativo que remetem à longa jornada pela busca da verdade por aquele que não hesita em pagar o preço do conhecimento, de contemplar a verdadeira luz do sol, que é o Bem. E, então, retorna para os seus iguais a fim de compartilhar o conhecimento, o elixir da vida e o ardor do coração. Podemos nos inspirar nessas jornadas, unos em espírito, propósito e amor por nossa Terra-mãe.
Notas:
[1] GLEISER, Marcelo. Entrevista a Bruno Leuzinger, do Projeto Draft. Brasil: janeiro de 2024.
[2] Island of Knowledge
[3] GLEISER, Marcelo. Entrevista online para Olívia Bulla, do InvestNews. Brasil: março de 2024.
[4] PAVIANI, Jayme. Platão & A Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
[5] FULLERTON, John. Revista Trip. São Paulo: março de 2019.
[6] Island Of Knowledge - Think Tank
[7] GLEISER, Marcelo. A Harmonia do Mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.
[8] MCCRATY, Rollin. O Coração Energético: Comunicação Bioeletromagnética Dentro e Entre Pessoas. Capítulo publicado em: Clinical Applications of Bioelectromagnetic Medicine. Nova York: Marcel Dekker, 2004: 541-562.
MCCRATY, Rollin. The Electricity of Touch: Detection and measurement of cardiac energy exchange between people Rollin McCraty with Mike Atkinson, Dana Tomasino and William A. Tiller.
Science of the Heart. Exploring the Role of the Heart in Human Performance. An Overview of Research Conducted by the HeartMath Institute.
[9] SATYAPREM. Entrevista a Vera Moreira sobre seu livro A humanidade é um vírus. Porto Alegre, 2022. Satyaprem realiza retiros de satsang no Brasil e países da América Latina, Estados Unidos e Europa – satsang é um termo em sânscrito que significa "encontro com a Verdade": reunião com um mestre que promove uma conversa sobre a real natureza do indivíduo e a sua não-separação do todo, do universo, do pleno.
Trecho da entrevista relacionado ao campo eletromagnético do coração: “Precisamos que toda a humanidade comece a voltar-se para o Ser. As pessoas se preocupam 100% com o Estar, com o Existir, e não com o Ser. E o Estar e o Existir têm uma ligação direta com o Ter. Eu preciso Ter. Ter é o centro da existência humana como a conhecemos, e não o Ser. Mudar esse endereço, esse ponto de centro, é fundamental. (...) Então, o vírus, humanidade – transpondo para a questão do ego –, o ego é nocivo para qualquer pessoa, o ego mata para sobreviver. O ego mata as relações amorosas da pessoa para sobreviver, o ego não conhece amor nem nada, só conhece a si, a sua sobrevivência, o que é curioso, pois o ego como entidade é inexistente. O ego é uma ilusão. O ser humano tem a capacidade de viver em uma ilusão como se fosse realidade.”
Todos os textos de Vera Moreira estão AQUI.
Foto de Capa: Imagem de Nossa Senhora com o Menino Jesus, no Oratório di Barottoli