Maio de 2024. Com todo o horror do que aconteceu durante a enchente no Rio Grande do Sul, o único conforto era sentirmos não ser pior do que a pandemia da Covid-19, porque podíamos estar juntos, podíamos nos abraçar e nos ajudarmos.[i] A necessidade do outro é uma questão primordial do corpo. E quem é o outro? O outro somos nós, eu e você, o vagalume e a flor, a pedra e a gota d’água, o todo, o outro é a Vida. Somos energia, fluímos entre corpos, todos os corpos, sólidos, líquidos, gasosos, visíveis e invisíveis, conhecidos e desconhecidos, terrenos e cósmicos.
Durante a pandemia, quando nos vimos concretamente sozinhos – corpos apartados, ruas desertas, a morte onipresente, o planeta sob suspeita – uma ruptura aconteceu e a sociedade, ou uma parte expressiva dela, percebeu a debilidade do Sistema, que não reconhece o outro. O Sistema criou uma narrativa redutora para nos desconectar da Vida, de forma a servir única e exclusivamente à matéria enquanto fruto monetário e de poder, raiz da violência. Estamos tão enredados nessa narrativa que mal nos reconhecemos, nossa energia estagnada, por anos, décadas ou mesmo a existência inteira. Mas ainda intuímos e, no limite do confronto, percebemos quanta falta sentimos do outro, de nós mesmos, do todo; e ansiamos febrilmente pelo reencontro, precisamos voltar para casa. A imensurável beleza e dinâmica da Vida é de nosso direito.[ii] Não somos “consumidores”. Somos filhos das estrelas. Somos uno em todos os corpos, na majestosidade do que nos habita.
Talvez seja impossível desvendar como essa narrativa foi construída, essa separação dos corpos em raças, cores, gêneros, “normais” e “diferentes/deficientes”, espécies, fronteiras… Como foi permitido que corpos se apoderassem de outros corpos numa construção social de classes, de colonialismo, de supremacia sobre outros seres vivos? Como foi possível infligir tanta dor e sofrimento a inumeráveis corpos humanos e não humanos, a partir de uma abstração totalmente desprovida de sentido, de Verdade? A historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz entende o corpo como a prova mais absoluta de nossa unicidade, de nossa raiz comum, de nossa existência enquanto seres vivos e não raciais, separados pela cor da pele, pelo gênero, pela ascendência; “os africanos e os indígenas sempre representados como selvagens, os brancos como nobres, os orientais como amarelos, estranhos”.
O que está sob a nossa pele é universal, é o próprio universo – e indistinto não só nos corpos humanos como em todos os corpos. As moléculas de DNA encontradas em nossas células apresentam a mesma estrutura e funcionam da mesma forma que as moléculas de DNA das células de um chimpanzé, um cavalo, um tubarão, uma minhoca, uma laranja, um grão de arroz, uma folha de agrião e até das bactérias e dos vírus. Todas elas circundadas pela água. Água que abunda em nossos corpos – humanos nascem 90% água, e ao morrer ainda somos 70% água. São apenas diferenças nas quantidades e ordenação que nos fazem a todos ser o que somos. Um gene, por exemplo, contribui fortemente para a diferença na forma de comunicação usada pelos humanos e pelos macacos. E os genes ainda podem ser ativados ou silenciados, de acordo com estímulos do ambiente – essa foi uma grande descoberta, no século XX, que permitiu entender como a experiência é capaz de operar transformações profundas nos corpos, sem alterar em nada o genoma. Há muita coisa ainda para ser desvendada, mas um novo campo de pesquisa se revelou promissor, a epigenética – epi, do grego, sobre, além da genética. Ou seja, compartilhamos com todos os seres vivos o milagre e o mistério que habitam e organizam nossos corpos. Nossa curiosidade talvez seja a maior dentre todos os seres e, assim, de experiência em experiência, chegamos até aqui. Continuaremos explorando o mundo e o universo, é da nossa natureza. Mas já podemos realizar que o amor é muito mais potente do que a dor.
Obra do excepcional artista Miró (foto de capa) retrata o movimento do tempo para nos revelar a vitória do amor, que os gregos nomearam sabiamente em Philia, Eros e Ágape.[iii] Da esquerda para a direita, ponteiros do relógio, avançamos da civilização do vapor, da máquina, na imagem do navio que está afundando, sob um céu repleto de estrelas cadentes – elas representam momentos em que os deuses contemplam a vida na Terra, sendo a oportunidade para que ouçam e realizem nossos desejos. Abre-se a cortina do palco para o momento da família, do amor dos pais pelos filhos nos casamentos por escolha, os adultos com a criança no meio, ao centro, de mãos, a pureza amparada, protegida, de forma que podem contemplar Eros com o olhar admirado e amoroso (os olhos de pai, mãe e filho são corações, o amor que é também Philia) e a cena avança para graúdas rosas vermelhas, símbolo da paixão, corpos perfumados e dos mais belos com os quais trocamos energia. No palco da vida, na longa trajetória de nossa experiência existencial, acontece o que desde o início dos tempos pedimos aos deuses: realizar o amor, Ágape, aqui na Terra.
O momento é crucial. Como diz a ativista Angela Davis, nunca tantas pessoas questionaram o modelo capitalista de hegemonia branca da sociedade. Foi o entrelaçamento das estruturas do capitalismo com a supremacia branca que levou à proliferação do racismo em quase todos os lugares, assim como à opressão estrutural definida pelo gênero e à opressão econômica definida pela classe. E agora, ainda nas palavras de Davis, “a interseccionalidade das lutas pela justiça social exige que reconheçamos que a justiça climática é o marco zero da justiça social”.[iv] Não temos outro planeta para habitar. E, com bizarras exceções, como a do bilionário norte-americano Elon Musk, nem queremos – é aqui a nossa casa, bela e rara, que amamos tanto, que nos proporciona essa troca energética e maravilhosa entre tão assombrosa variedade de corpos. Todos dançando no ritmo do universo. Assim é.
[1] MOREIRA, Vera. Porto Alegre: Plataforma Sler, 2023.
Durante mais de 60 dias, todos os colunistas da Sler praticamente só tiveram um único assunto: a enchente. Foram mais de duas centenas de textos abordando os diversos ângulos da tragédia. E assim também em toda a mídia do Rio Grande do Sul. Ligávamos o rádio e era só notícia da enchente, fatos que extrapolavam a nossa imaginação. Como disse o jornalista Eduardo Bueno, que estava em SP e veio para Porto Alegre depois do Guaíba transbordar e cidades da Serra terem sido devastadas, algumas literalmente riscadas do mapa, só in loco se podia ter a dimensão do que estava acontecendo, ninguém que ouvia ou lia sobre a enchente poderia ter noção do que estávamos vivendo. O horror nos atingiu em cheio, mas predominou a solidariedade. Nunca estivemos tão juntos, participando dos resgates, arrecadando mantimentos de todo o tipo para doação, trabalhando nos abrigos, cozinhando para os desabrigados, dividindo nossas casas, fazendo mutirões de limpeza, enfim, nos ajudando em tudo o que era possível, cuidando, consolando e sendo consolados. Não vamos esquecer.
[2] MOREIRA, Vera. O gênio poético / Livro Dois: O Todo, Mergulhar no desconhecido, págs. 6/ 9. Porto Alegre: Editora Espírito, 2022.
[3] Os gregos, com Platão, qualificaram o amor em Philia, o amor afeição, de carinho, afinidade, o amor da amizade; Eros, o amor paixão, de natureza sexual, atração física, o amor do prazer; Ágape, o amor incondicional, de entrega genuína, pura, o amor do ilimitado.
[4] DAVIS, Angela. Disciplina deste pós-graduação: Projeto em Ciências Humanas, Aula 2 / Partes 1 e 3.
Todos os textos de Vera Moreira estão AQUI.
Foto de capa: Miró em exposição no Museu Guggenheim Bilbao