Nosso corpo é forma da matéria que existe tanto no nível biológico como no da construção individual/social/cultural. Mas é ainda mais. É corpo na exuberância e gravidade de um ser vivo em conexão com o Todo. Corpo físico e metafísico. Totalmente distinto do corpo narcísico, da autossatisfação, que se avolumou com o fenômeno de individualização na sociedade moderna/consumista, como veremos com o filósofo Gilles Lipovetsky, o sociólogo Zygmunt Bauman e em obras de arte de Salvador Dali e Fernando Baril. Distinto também do corpo da medicina contemporânea, que dissocia cada vez mais o ser humano do seu conjunto orgânico, cristalizando a metáfora cartesiana do corpo como máquina, na qual tudo pode ser consertado, trocado, manipulado, desprovido de significado – as consequências se desdobram em graves distúrbios psicológicos e desafios éticos na manipulação do genoma, entre outras.
A história evolutiva traçada pelo ser humano desde o Big Bang aponta nosso protagonismo até os dias atuais ultra tecnológicos, em crescimento exponencial. Quando nos apartamos da natureza, nos deslocando do Todo para um topo fantasiado no juízo de domínio, rompemos com o mundo natural e edificamos nossa desgraça – não tínhamos mais elos, só o cetro, reis sem reino, deuses sem céu. Criamos, ignorante e tragicamente, a solidão, o desamparo, o vazio. É o que nos angustia ao último grau dos nossos sentidos, pois deriva de uma ruptura impossível, de uma violência à qualidade de seres vivos.
Na ilusão de consolo, pioramos tudo ao criar um estilo de vida hedonista, centrado no consumo, ou melhor, no hiperconsumo – não só material, com a profusão de mercadorias, comida, bebida, sexo, etc., como também psicológico, com a exposição obsessiva da persona e o entretenimento tolo das redes sociais – ao qual entregamo-nos ansiosamente. Reduzimos o corpo a uma massa de carne inconsciente a ser satisfeita no raso, desprezando o inesgotável potencial de nossos sentidos.
Acontece que não há chance de alívio, pois a descomunal energia, que nos move e se transforma a cada segundo dentro de nós, sempre nos confrontará com os desejos mundanos irrefreáveis e irrealizáveis por completo. Nunca será possível satisfazer a oferta do nosso corpo: cérebro e coração explodindo em sinapses e conexões dentro e fora da pele, carne e alma se amando, digladiando e conciliando [1]. Só quando admitirmos a dimensão do mistério e milagre que nos habita, poderemos perceber tal ordem de abundância. E, assim, alcançarmos não um alívio, mas a sobriedade que nos permitirá reconhecer que podemos – e muitas vezes, devemos – não querer o que desejamos [2].
O endeusamento da técnica, a serviço do capital e do poder – muito diferente da ciência, onde mora a sabedoria [3] –, está nos levando a uma realidade que implicará em um redesenho do planeta. Se continuarmos nos julgando “senhores da natureza”, vamos praticamente exaurir os recursos naturais. Em apenas pouco mais de um século, a mineração de matérias-primas para fabricação de automóveis e eletroeletrônicos, a mineração de terras raras para as diversas aplicações tecnológicas, além da extração de ouro e pedras preciosas, já atingiu volumes comprometedores da estabilidade do planeta. Some-se o manancial de água e de energia necessário para a manutenção dos servidores de internet espalhados pelo mundo todo – a “nuvem” que abriga os dados da humanidade, na verdade, é formada por estes servidores. Um único prédio com supercomputadores pode consumir o equivalente de água – para mantê-los refrigerados, garantindo que não sobreaqueçam – que consome uma cidade de até 50 mil habitantes [4]. Mais a gigantesca rede de cabos de fibra óptica instalada no fundo dos oceanos Atlântico e Pacífico, com cerca de 1,5 milhão de quilômetros, para viabilizar as comunicações globais através de e-mails e videochamadas, por exemplo. E ainda o plástico, que já está até dentro dos corpos dos seres vivos – humanos inclusos – e o lixo todo, em tal volume que nem temos mais como medir e levará milênios para se decompor. O que estamos fazendo é eleger as máquinas em detrimento dos seres vivos, desprezando a beleza inigualável de nossa casa, Terra.
Este não pode ser o final da história. É por isto que a mesma ciência que nos levou, em certo estágio, a nos acreditarmos sábios com o domínio da técnica, avançou para nos possibilitar a volta completa do círculo – Oroboros. Elaboramos um mapeamento do corpo biológico e do universo e – mesmo que ainda não tenhamos desvendado toda a capacidade da mente e que a natureza da energia escura seja um dos maiores desafios atuais da física, da cosmologia e da filosofia [5] – já temos uma compreensão importante da vida com o DNA, a física quântica, a psicologia, a arqueologia, etc., assim como uma leitura bem acurada de nossa galáxia. Saber tudo, talvez nunca venhamos a saber. Não é o que importa. O essencial é fazer as perguntas certas, aproveitar os recursos técnicos apenas para explorar campos de importância vital, usar a máquina com sabedoria. Somos os seres pensantes, donos da capacidade de entender, interpretar, decidir e contar histórias. “Somos a voz do universo” (Gleiser, 2022). Se nunca refletirmos sobre a construção da história humana, do mundo em que vivemos, nossa energia será desperdiçada.
É um movimento também de resgate ancestral, de conhecimento dos povos originários, na voz expressiva dos indígenas e dos pretos, que vem gerando impacto na sociedade branca tão esvaziada de sentido. Ao nos assumirmos seres da natureza, adquirimos/resgatamos consciência do que somos. Na magnificência da vida que habita nosso corpo e promove nossa inteligência, percebemos o quanto somos complexos e completos, unos. Ressacralizamos o mundo e não nos sentimos mais sozinhos. Como o rio que se junta ao mar, nos tornamos, então, um só corpo cósmico. Energia fluindo em nós e no outro, entre corpos. Não somos “consumidores”. Somos filhos das estrelas.
[1] LEE, Rita e CARVALHO, Roberto. A canção Amor e Sexo (2003) faz uma bela interpretação da discussão íntima entre alma e corpo. Letra inspirada na crônica O amor atrapalha o sexo, de Arnaldo Jabor (1940-2022), publicada no jornal O Globo, em 2002.
[2] FORBES, Jorge. Você quer o que deseja? Santana de Parnaíba, SP: Manole, 2016. O autor, psicanalista lacaniano, mostra que nada que alguém possa querer é suficiente para satisfazer o desejo. Para Jacques Lacan, desejar é sempre desejar outra coisa.
[3] PAUWELS, Louis e BERGIER, Jacques. O homem eterno. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1971. “O saber-fazer é uma aliança deficitária de teoria e prática que acabou inscrevendo na mente humana a ideia de ter criado uma civilização científica, enquanto, na verdade, não passa de uma civilização tecnológica. A impaciência do Fazer convive mal com as sutilezas do Saber.”
[4] INTERCEPT, 14.09.2024. Tá ruim a seca? Vai piorar. Empreitadas de big techs no Brasil vão sugar a nossa água.
[5] GLEISER, Marcelo. Disciplina deste pós-graduação: A história do universo, Aula 2 / Parte 4. A energia escura é uma forma hipotética de energia que estaria distribuída por todo espaço – 95% ainda desconhecida – tendendo a acelerar a sua expansão. A principal característica da energia escura é a forte pressão negativa, utilizada por diversas teorias atuais que tentam explicar a expansão acelerada do universo.
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Ilustração da Capa: Geralt / Pixabay