Houve um tempo, no começo de tudo, em que nosso mundo era como uma bola de fogo. Passaram-se milhões de anos até que começasse a resfriar. Então, a Terra vomitou uma quantidade colossal de gases e vapor d’água. Vieram as chuvas e formaram-se rasos oceanos primitivos. Os seres só existiam ainda em promessa na sopa primordial. Até que, há 3,5 bilhões de anos, surgiram as primeiras cianobactérias. Capturavam a luz do sol e produziam oxigênio, o que foi alterando a estrutura da atmosfera terrestre. Os corpos em promessa começaram a emergir, desde os mais simples, evoluindo, aos mais complexos. Era o despertar da vida, com toda a beleza contida em cada gota d’água e cristal de gelo – mandalas arquetípicas.[1] A misteriosa trajetória da vida – da qual temos apenas uma visão empírica – tornou nosso planeta um lugar exuberante e único entre os cerca de 200 bilhões de planetas da Via Láctea, conforme atesta o astrofísico Marcelo Gleiser. E, talvez, até mesmo entre outras bilhões de galáxias na imensidão do universo, cada uma com similar número de planetas.
Os estágios pelos quais passamos, desde os primeiros seres unicelulares até nossos corpos multicelulares complexos, cumpriram seu papel para nos habilitar a compreender o que somos. Carregamos informações genéticas de todas as etapas da vida, desde as origens deste planeta e até mesmo dos quase 14 bilhões de anos do universo. Somos corpos de grandiosidade singular, seres da natureza, filhos das estrelas – quando as estrelas explodem, morrem, arremessam ao espaço a matéria com os elementos químicos que nos constituem. O astrônomo Carl Sagan já dizia que somos poeira das estrelas, assim como a própria Terra e todo o sistema solar. A matéria-prima do ar, das rochas, da vida, enfim, é forjada pelas pressões gigantescas no coração das maiores estrelas.
Portanto, este corpo que nos carrega por aí, não é só nosso. É um habitat cósmico e terreno com várias instâncias coexistindo, ao ponto de a ciência determinar que apenas 10% do corpo se constitui particularmente humano. Só em bactérias e fungos são mais de 100 trilhões que nos habitam, mais amebas, vermes e parasitas e ainda um manancial de água com seus íons e gases, o ferro no sangue, o cálcio nos ossos. O infinitamente pequeno dentro de nós, numa composição multiforme com os mesmos elementos químicos e físicos e o mesmo mistério e força do espaço profundo. Cada uma de nossas células, com seus 23 pares de cromossomos contendo bilhões de átomos que acomodam a informação codificada do DNA, a velocidade vertiginosa do núcleo. Os átomos radioativos que se desintegram e se transformam em outros átomos de substâncias inteiramente diversas. As colisões dos prótons e elétrons, as sonoras batidas de nosso coração… Tudo o que navega sob nossa pele, as trocas intersticiais com o ambiente.
As ondas eletromagnéticas em nosso corpo transcendem a pele e se integram ao campo externo. Interatuamos com outros seres vivos visíveis e invisíveis, de pessoas e animais a oceanos e florestas, o ar, o vapor, a terra, o fogo, etc. – e esses entre si. Todos fluindo, dançando. O que circula também sob as penas dos pássaros, nos veios da vinha, nas redes de micélios no subsolo, no “vazio” entre os planetas… A energia que explode no ar, a velocidade da luz, a radiação, as violentas colisões no universo… Tudo no existir está em troca constante. Percebemos, consciente ou inconscientemente, a conexão entre todos os corpos, com suas equivalências e origens evolutivas. Uma troca que sintoniza nossas fontes naturais mais poderosas. Experiência particularmente sublime entre corpos humanos, no amar e sermos amados, no sentido de comunidade, nas convivências imersivas de grupo, que nos elevam com força e beleza.[2]
[1] MOREIRA, Vera. Trilogia O gênio poético / Livro Um: Água. Porto Alegre: Editora Espírito, 2021. Mandalas arquetípicas, págs. 15 a 21.
[2] MOREIRA, Vera. A voz do universo. Porto Alegre: Editora Espírito, 2022. Conferência de Marcelo Gleiser no Fronteiras do Pensamento 2022.
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Foto da Capa: La Casa de Goethe / Pixabay