A percepção de nossa majestosidade nasce da consciência de que nos alienamos do corpo ao virarmos as costas para a natureza. Adotamos um modo de vida do campo, domesticamos animais, desenvolvemos a agricultura, depois centramos no espaço urbano, com predominância do sistema industrial e, neste século, do ambiente digital e seus códigos. As consequências vieram em cascata, da posse de terras e o desenho de fronteiras com suas guerras – sendo recente a Europa convulsionada que subjugou ainda mais dramaticamente as suas colônias e que segue com novas guerras – ao dinheiro globalizado em um mundo líquido, como definiu Zigmunt Bauman.
Na Europa Ocidental, a partir do sistema cartesiano formatado em tradições binárias, traçou-se grosseiramente uma fronteira entre corpo e espírito. Foi quando as sociedades fizeram do corpo um ter, mais do que uma estirpe identificadora, segundo o antropólogo e sociólogo David Le Breton (2011, pág. 27). O corpo da Modernidade é o que resultou do recuo das tradições populares e do advento do individualismo ocidental, quando se estabeleceu uma fronteira entre um indivíduo e outro, com um encerramento do sujeito em si mesmo.[1]
O filósofo grego Aristóteles delimitava o eu enquanto corpo e anatomia num limite físico. Mas a totalidade do eu se constituía no receptáculo físico e uma entidade metafísica – o corpo preenchido pela alma. Já na Índia, o dualismo grego entre corpo e alma era rejeitado, conforme o médico e biólogo indiano, naturalizado norte-americano, Siddhartha Mukherjee. [2]
Filósofos védicos, entre V e II a.C., saudavam a eliminação do eu individual e sua fusão com o universal, entre corpo individual e alma cósmica. Chamavam o eu de ‘atman’. O eu universal, multitudinário, em contraste, era o ‘Brahma’. Para esses filósofos, o eu era uma fusão ideal de ‘atman’ e ‘Brahma’, ou, talvez mais exatamente, o fluxo incessante do eu universal através do eu individual. (…) Havia uma ecologia cósmica que ligava o individual e o coletivo espiritual num único Ser. A frase ‘Tat Twan Asi’ (Você é Isso) permeia os Upanixades e é uma expressão do eu ilimitado que permeia não apenas um único corpo físico, mas também o cosmos. Você, o eu, proclamam os Upanixades, é permeado e penetrado pelo Isso, o universal. Num corpo ideal, o universal flui através do individual. (MUKHERJEE, 2022, págs. 275 e 276)
Assim era nas histórias antigas e tradicionais do mundo – não se concebia separação de corpo e alma, corpo e espírito, corpo e universo. Nossos ancestrais narravam o mundo com vasta riqueza de sentido, toda simbólica, em uma linguagem distinta da que se impôs na comunicação do homem moderno.
Nas Américas, sonhos e visões estabeleciam jornadas de exploração do Ser e do Não-ser, que as etnias indígenas empreendiam de diversas formas, percorrendo o continente de uma ponta a outra e estabelecendo interações humanas, naturais e cósmicas. “Para os maias, com sua cultura extremamente desenvolvida, o centro do universo não era o homem, tampouco a Terra, mas o próprio cosmos”, comenta o arqueólogo Klaus Peter Kristian Hilbert. [3] Na Amazônia, desde o início dos tempos, os yanomamis nomearam seres vivos e fenômenos naturais em espíritos xapiri. Eles vêm ao encontro dos xamãs, que conversam intensa e animadamente com eles, brincando, dançando, negociando e os apaziguando quando estão muito bravos. [4]
Na África, o homem tradicional está imerso no seio do cosmos, de sua comunidade, ele participa da linhagem de seus ancestrais, de seu universo ecológico, e isso nos fundamentos mesmo de seu ser. [5] Ele dança o tempo todo, naturalmente – é incompreensível para um africano uma pessoa não saber dançar – conectando céu e terra e todos os seus elementos.
Na Austrália, estabeleceram-se “rastros dos cantos” através do deserto e das matas, com os aborígenes dando existência ao mundo por meio do canto, do som. Rastros imateriais e invisíveis de seres totêmicos legendários que vagaram pelo continente no Tempo do Sonho (da Criação), cantando tudo o que cruzava seus caminhos – pássaros, animais, plantas, pedras, poços, etc. [6]
Na Oceania, os canaques concebem o corpo não como uma forma e uma matéria isoladas do mundo; mas como a totalidade de uma natureza que ao mesmo tempo o assimila e o banha. O corpo recebe suas características do reino vegetal, não como metáfora, mas como uma identidade de substância. [7]
Assim fomos sendo construídos e nos construindo em todo o planeta, em cada lugar, em cada povo, em imagens, texturas, movimentos, sons, mimética, arte, muito mais através dos sentidos do que da língua(gem), nos conectando uns aos outros e também a corpos animais, vegetais, líquidos, sólidos, gasosos. Desenvolvemos capacidades de comunicação não verbal, de “leitura” da natureza, de telepatia, de hipnose, de sonhos criativos. Conexões entre corpos terrenos e cósmicos estão gravadas em nosso DNA desde os tempos mais remotos, quando o Ser e o Não-ser eram Aquilo-que-É sem barreiras de observação.
Um mito linguístico da história humana, calcado na figura do Homem Vitruviano de Leonardo Da Vinci – mais concretamente, no europeu, branco, heterossexual, falante de uma língua ocidental de prestígio – tornou recorrente a ideia de que a lingua(gem) é o fiel da balança acerca do que somos. Mas devemos refletir que não está exatamente na linguagem, mas na capacidade de narrar experiências através das linguagens e dos símbolos. Uma comunicação que promoveu a coesão de grupos humanos, conforme definiu o historiador Yuval Noah Harari. Segundo o linguista aplicado Alastair Pennycook (2017, pág. 133), a produção de sentido vinculada ao verbal exclui não apenas a riqueza da comunicação humana como um todo, mas também a possibilidade de admitirmos que os não humanos (animais) também têm linguagem, “ou seja, que não há entre nós e eles uma dicotomia, mas graus de complexidade e alcance no uso situado da linguagem em seus próprios mundos vividos.”[8] Era o que o filósofo Friedrich Nietzsche se perguntava.[9]
É a linguagem a expressão adequada de todas as realidades? A “coisa em si” (tal seria justamente a verdade pura sem consequências) é, também para o formador da linguagem, inteiramente incaptável e nem sequer algo que vale a pena. Ele designa apenas as relações das coisas aos homens e toma em auxílio para exprimi-las as mais audaciosas metáforas. Um estímulo nervoso, primeiro transposto em uma imagem! Primeira metáfora. A imagem, por sua vez, é modelada em um som! Segunda metáfora. E a cada vez completa mudança de esfera, passagem para uma esfera inteiramente outra e nova. (…) Acreditamos saber algo das coisas mesmas, se falamos de árvores, cores, neve e flores, e no entanto não possuímos nada mais do que metáforas das coisas, que de nenhum modo correspondem às entidades de origem. (NIETZSCHE, 1974, pág. 55)
Podemos também nos perguntar como faz o jornalista, sociólogo e professor Juremir Machado da Silva. [10]
Algum dia fomos humanos? Ainda somos humanos? Ou, seguindo as questões Kantianas: o que podemos saber? O que devemos fazer? O que podemos esperar? O que é o homem? Seguindo em uma mesma linha, poderíamos perguntar qual a origem dessa maneira de designar o ser humano como ‘homem’. Outra reflexão possível é: ainda tem lugar para o humano no universo? Qual é esse lugar?”. Durante muito tempo, o homem foi a medida de todas as coisas. No entanto, agora, reivindicar um lugar para o ser humano pode ser entendido como antropocentrismo. “Da mesma forma, podemos entender que todas as escolhas em nome das outras espécies são, também, humanas. Assim, o questionamento que se coloca é: ao reconhecer o direito dos outros animais, estamos abrindo mão do antropocentrismo ou, de uma maneira benevolente, estamos reafirmando que o homem continua sendo aquele que escolhe e define? Outra questão importante é: qual o lugar possível para o humano no universo atual? Universo esse que já sabe que o humano não é a medida para todas as coisas, mas sim uma espécie entre as outras. Podemos pensar em um humano universal? Durante muito tempo, acreditou-se que haveria uma categoria capaz de congregar todos os humanos acima de suas particularidades. Isso deveria ser o denominador comum que regeria uma série de coisas. Mas as condições históricas concretas nos mostram cada vez mais que o humanismo universal serviu para encobrir relações de poder. Hoje vivemos uma virada de jogo, que procura fazer com que esse universalismo falso e abstrato seja interrompido. (SILVA, 2022)
[1] LE BRETON, David. Antropologia do corpo. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2011.
[2] MUKHERJEE, Siddhartha. A canção da célula. São Paulo: Companhia das Letras, 2022, págs. 275/ 276.
[3] HILBERT, Klaus Peter Kristian. Disciplina deste pós-graduação: História da vida e da evolução humana. Aula 3 / Parte 2.
[4] KOPENAWA, Davi e BRUCE, Albert. A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
[5] Ibid. LE BRETON.
[6] CHATWIN, Bruce. Rastro dos cantos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
[7][7][7] Ibid. LE BRETON.
[8] PENNYCOOK, Alastair. Posthumanist Applied Linguistics. New York: Routledge, 2017. Pág. 133.
[9] NIETZSCHE, Friedrich. Os Pensadores (Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral). São Paulo: Abril Cultural, 1974. Pág. 55.
[10] SILVA, Juremir Machado. Disciplina deste pós-graduação: Desenvolvimento de competências do especialista em humanidades, Aula 1 / Parte 1.
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Foto da Capa: Iffany / Pixabay