O pensador italiano Pico della Mirandola (1486) revolucionou a cultura ocidental com seu De Hominis Dignitate, (Discurso Sobre a Dignidade do Homem)¹. Ele investigava a natureza do ser humano, complexa e mutável, e sua capacidade de conciliar os diferentes aspectos do conhecimento. A temática da dignidade se firma na capacidade que o homem tem de raciocinar, que irá permiti-lo tomar consciência da sua liberdade. No pensamento do filósofo, o que distingue o homem do mundo natural do mundo angélico, no qual o homem é o mediador, é justamente a capacidade de ser o artífice de si mesmo. O animal, devido à natureza que lhe é dada, só pode ser animal e o anjo só pode ser anjo, enquanto o homem tem quase o poder divino de se constituir segundo aquilo que quiser ser. O homem, então, é o ser mais digno da criação de Deus, segundo Mirandola, é o único que não tem o seu destino traçado, diferente das demais criaturas. Assim, a possibilidade de viver como animais ou de se reconstruir seguindo a imagem divina depende dele mesmo.
“O homem, ó Asclépio, é um grande milagre!”
“Mas, por quê?”, pergunta Pico della Mirandola.
E ele conclui:
“Deus depositou no homem, no momento de sua criação, as sementes de todas as possibilidades e gêneros de vida. Sejam quais forem as sementes que o homem semeie e cultive, elas germinarão e produzirão frutos nele.
Se forem vegetais, o homem se tornará uma planta;
se forem de sensualidade, ele se tornará um animal;
se racionais, ele se elevará ao celeste;
se intelectuais, será anjo e filho de Deus;
e se, insatisfeito com todas essas criaturas,
ele se voltará ao centro de sua própria unidade, tornando-se espírito uno com Deus, na solitária escuridão do Pai, aquele que foi posto acima de todas as coisas estará sobre todas as coisas. Quem, pois, não admirará esse camaleão?” (MIRANDOLA, 1486)
Pico della Mirandola combinou doutrina cristã e mundo pagão, filósofos gregos e pensadores medievais, filosofia árabe, magia e cabala, conciliando a religião filosófica platônica com as diversas experiências do mundo. Apontando para uma busca do conhecimento em contínua expansão, o Discurso propunha uma filosofia universal capaz de transcender tempo e espaço, que vê no ser humano o grande milagre em que habitam o mundano e o divino.
Quase cinco séculos depois, o filósofo Jean-Paul Sartre (1905-1980) diria que a existência precede a essência, seguindo a mesma premissa de que o homem primeiro existe, depois se define. Portanto, o homem existe e é livre para se construir por suas escolhas. Se o homem, na concepção do existencialismo, não é definível, é porque ele não é, inicialmente, nada. Ele apenas será alguma coisa posteriormente, e será aquilo que ele se tornar. Assim, não há natureza humana. É diferente dos animais, que nascem determinados, em que a essência precede a existência.
Ainda segundo Pico dela Mirandola, o “poder ser” do qual unicamente o homem tinha direito através da sua razão, o compromissava a agir de acordo com os mais altos valores espirituais, e nunca se contentar com as coisas medíocres. Para ele, o compromisso ético marcava a superioridade do homem em relação a todos os outros seres vivos. Se o homem pode raciocinar, deve ter consciência da sua liberdade. E se sua vontade é livre, ela só poderia estar voltada para o bem. Zygmunt Bauman (2011, pág. 54) pondera que a pergunta muito comum é se os seres humanos são bons “por natureza”, como insistia o filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau (1712 – 1778), ou “por natureza” maus, como presumia o filósofo inglês Thomas Hobbes (1588 – 1679). Para Bauman², nenhuma das duas coisas, “e, se o fossem, não saberíamos”. Bauman diz que podemos razoavelmente supor que os humanos são “por natureza” morais; e que ser moral talvez seja o atributo constitutivo da humanidade, um traço que torna singular a condição humana e a distingue de qualquer outro modo de ser e estar no mundo. O próprio fato de se fazer a pergunta sobre a bondade ou maldade da natureza humana (o fato de ela poder ser feita) é toda a prova de que este é o caso.
“Ser moral” não significa necessariamente “ser bom”, mas ter comido da árvore do bem e do mal e saber que coisas e atos podem ser bons ou maus. Ora, para saber isso, seres humanos precisam de outro conhecimento anterior a esse: que as coisas e os atos poderiam ser diferentes do que são. Poderíamos refletir que isso tem a ver com a partícula “não”, presente em todas as línguas usadas pelos seres humanos para transformar o mundo lá fora no Lebenswelt, a existência na experiência. O “não” só faz sentido porque presume que seja possível agir de mais de uma forma, ou que as coisas “lá fora” podem ser arranjadas de mais de um jeito. O “não” implica que as coisas não têm de ser como atualmente são, que elas podem ser alteradas, tornadas melhores, também. Não fosse por isso, não se falaria de moral: moral, afinal (e talvez em primeiro lugar), tem a ver com escolha. Sem escolha, não existe moral. (BAUMAN, 2011, pág. 54)
¹MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem. São Paulo: Ayine Editora, 2021.
²BAUMAN, Zygmunt. Bauman sobre Bauman. Rio de Janeiro, Editora Zahar, 2011. Pág. 54.
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