Há 50 anos, Fritjof Capra (1975, pág. 13) disse que tinha experimentado algo de muito belo que o levara a percorrer o caminho até o seu livro O Tao da Física: Um paralelo entre a física moderna e o misticismo oriental[1], que se tornou um best-seller em vários países. Ele estava na praia e observava o movimento das ondas, sentindo o ritmo da sua própria respiração. Foi nesse momento que percebeu intensamente o entorno, o ambiente, que se revelava parte de uma gigantesca dança cósmica.
Como físico, eu sabia que a areia, as rochas, a água e o ar a meu redor eram feitos de moléculas e átomos em vibração e que tais moléculas e átomos, por seu turno, consistiam em partículas que interagiam entre si através da criação e da destruição de outras partículas. Sabia, igualmente, que a atmosfera da Terra era permanentemente bombardeada por chuvas de “raios cósmicos”, partículas de alta energia que sofriam múltiplas colisões à medida que penetravam na atmosfera. Tudo isso me era familiar em razão de minha pesquisa em Física de alta energia; até aquele momento, porém, tudo isso me chegara apenas através de gráficos, diagramas e teorias matemáticas. Sentado na praia, senti que minhas experiências anteriores adquiriam vida. Assim, “vi” cascatas de energia cósmica, provenientes do espaço exterior, cascatas nas quais, em pulsações rítmicas, partículas eram criadas e destruídas. “Vi“ os átomos dos elementos – bem como aqueles pertencentes ao meu próprio corpo – participarem desta dança cósmica de energia. Senti o seu ritmo e “ouvi” o seu som. Nesse momento, compreendi que se tratava da Dança de Shiva, o Deus dos dançarinos, adorado pelos hindus. (CAPRA, 1975, pág. 13)
No despertar da civilização, o homem era movido por intensa curiosidade, que o levava a observar a terra e o céu, sem, no entanto, conseguir apreender as dinâmicas da natureza. Era um observador que buscava respostas e tentava copiar processos, como o do fogo que viera do céu a bordo de um raio. Nunca saberemos o que o homem primitivo sentia ao olhar o brilho das estrelas. Nem o que ele pensava na sua intensa troca com outros corpos terrenos, especialmente os de animais, que observava fixa e demoradamente, como se quisesse hipnotizá-los. Mas podemos supor que ele se maravilhava, pois passou a registrar sua realidade nas paredes das cavernas e a criar conceitos e interpretações. Ao grafar o corpo na memória, capturar sua forma e sua força, acredita-se que buscava ser bem-sucedido na caça; e talvez buscasse também a alma do ancestral em seu próprio corpo.[2] Especialistas em arte das cavernas interpretam as criaturas totêmicas, como a escultura do homem-leão (foto de capa), como seres metamórficos, mediadores entre este mundo e o outro. A combinação de duas formas da natureza numa terceira que jamais existiu, a não ser pela imaginação – sem qualquer utilidade prática visível, como a de uma pedra lascada ou outro objeto cortante utilizado para caça –, já demonstrava a capacidade de abstração de seu criador. Era um objeto intencionalmente dotado de sentidos simbólicos.[3]
Ao estrear a arte no mundo, o homem primitivo nos legou o sonhar. Suas impressões foram passando de corpo a corpo por gerações e, milênios após, se expandiram da arte à ciência. A curiosidade continuava a nos mover e empreendemos uma longa jornada científica até o universo dos átomos. Com a teoria quântica, vieram abaixo conceitos que já eram clássicos, de objetos sólidos e de leis da natureza estritamente deterministas. Os padrões passaram a representar de probabilidades de coisas a probabilidades de interconexões. Partículas subatômicas perderam o status de entidades isoladas e passaram a só ter significado enquanto interconexões, antes e depois, em experimentos sob medição. Espaço, tempo, matéria, objeto, causa e efeito demandaram novas interpretações. O mundo deixou de ser entendido como feito de unidades menores com existência independente. Percebeu-se uma unidade básica no universo. Então, compreendemos que a vida segue um padrão em rede, o que nos permitiu uma “visão” holística da natureza, resgatando nossa conexão orgânica: o todo está em cada parte e cada parte se encontra no todo.
Ao penetrar na matéria, descobrimos que a natureza é uma teia complexa de relações entre as diversas partes do todo, incluindo quem observa de maneira ativa. Capra (1975, pág. 58) escreveu: “O observador humano constitui o elo final na cadeia de processos de observação, e as propriedades de qualquer objeto atômico só podem ser compreendidas em termos de interação do objeto com o observador. Em outras palavras, o ideal clássico de uma descrição objetiva da natureza perde sua validade. A partição cartesiana entre o eu e o mundo, entre o observador e o observado, não pode ser efetuada quando lidamos com a matéria atômica. Na Física atômica, jamais podemos falar sobre a natureza sem falar, ao mesmo tempo, sobre nós mesmos”. (CAPRA, pág. 58).
Foi o físico Werner Heisenberg – Prêmio Nobel em 1932 – que introduziu esse papel crucial do observador ativo na física quântica. Fritjof Capra seguiu adiante e construiu uma sólida ponte entre a física e o misticismo oriental. A ideia de que o processo de conhecimento abarca a compreensão da realidade é um princípio do misticismo. O conhecimento místico nunca pode ser obtido pela observação desprendida e objetiva, ele sempre envolve a participação plena de todo o ser do indivíduo. Na física quântica, o observador e o observado não podem mais ser separados, mas ainda podem ser distinguidos. Místicos em meditação profunda chegam a um ponto em que a distinção entre observador e observado é completamente demolida: sujeito e objeto se fundem. Um só corpo. O mindfulness nasceu na Índia, destinado a percorrer um caminho espiritual de desenvolvimento ético e moral, que leva à sabedoria e à compaixão. O budista e professor de Zen Dharma na Califórnia (EUA), Ronald Purser, define o mindfulness como uma tradição monástica, à qual as pessoas dedicavam toda sua vida, baseada na libertação espiritual, uma forma de se libertar das fronteiras do “eu” e reverter as causas do sofrimento humano.
Em O Tao da Física, Capra traduziu os conceitos científicos em uma linguagem compreensível aos leigos. Levou-nos a conhecer as teorias da física atômica e subatômica, a teoria da relatividade e a astrofísica nas pesquisas mais recentes da época (década de 70). A visão de um mundo emergia dessas teorias para as tradições místicas do Hinduísmo, Budismo, Taoísmo, Zen e I Ching. Arrebatou milhões de mentes e corações no mundo todo. Capra nos abriu a porta para um conhecimento que nos é nato, mas não conseguimos apreender espontaneamente. Nossa inteligência espiritual, um dado antropológico preexistente no ser humano, que absolutamente todos nós possuímos, apenas com diferentes graus de manifestação, foi ativada. O filósofo e professor Leonardo Agostini (2022) explica que, quando uma pessoa desenvolve a inteligência espiritual, se abre para o mundo e passa a enxergar a realidade de forma sistêmica. Mas, tal qual outras formas de inteligência, a espiritual só se manifesta a partir de estímulos. É preciso cultivá-la.[4]
O professor falou em aula que este conceito é muito recente e sua exploração é um campo em aberto. Muitas coisas novas já despontaram, como a inclusão do termo “espiritual” entre as prerrogativas do bem-estar pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Em resposta à pergunta “Conseguiremos desenvolver a inteligência espiritual em toda a sua potencialidade enquanto vivermos sob o poder da sociedade de consumo?”, Agostini responde: “O potencial existe; se os seres humanos querem, desejam desenvolver a inteligência espiritual em toda a sua potencialidade, não saberemos… é uma proposta e não uma imposição… poderíamos substituir a inteligência espiritual por ‘liberdade, igualdade e fraternidade’ ou, ainda, pela ‘Rio 92’. Continuamos assistindo episódios de desrespeito, descumprimento às pautas que trazem e sustentam. Em relação à Inteligência Espiritual, ela é uma das inteligências (e não a única); por isso, penso que o mais adequado é a visão de conjunto (e não a de elemento). Como se afirma recorrentemente, no ‘mundo do possível tudo é possível’, a questão está em querer tornar possível. Isso depende de cada um e de todos os envolvidos.”
[1] CAPRA, Fritjof. O Tao da Física. São Paulo: Editora Pensamento – Cultrix, 1975. Pág. 13.
[2] JANSON, H. W. e JANSON, Anthony F. Iniciação à História da Arte. São Paulo: Editora Martins Fontes: 1996. “Ao retratarem um animal, pretendiam fazer, também, com que ele fosse trazido ao seu alcance e, ao ‘matarem’ a imagem, julgavam ter matado o espírito vital do animal.”
[3] HOMEM-LEÃO. Caverna Hohlenstein Stadel. Foto Dagmar Hollmann / Wikimedia Commons. A escultura do homem-leão, de 29,6 centímetros, datada de 40.000 anos atrás, esculpida no marfim de um único dente de mamute por meio de uma pedra lascada, até o momento é tida como o objeto artístico mais antigo da humanidade..
[4] AGOSTINI, Leonardo. Disciplina deste pós-graduação: Projeto de carreira e vida: Autoconhecimento e realização / Inteligência espiritual, Aula 4 / Parte 1.
Todos os textos de Vera Moreira estão AQUI.
Foto da Capa: Dagmar Hollmann Wikimedia Commons