Nossos ancestrais cultivavam a inteligência espiritual, notadamente no fascínio que todos os povos demonstraram pelo mistério da Criação. Tema vasto e rico, Marcelo Gleiser (1997, págs. 18 e 19) lhe dedicou o capítulo de abertura do seu livro A dança do universo [1], sobre a evolução do pensamento cosmológico. De pronto, ele afirma que os mitos de Criação, de culturas pré-científicas, encerram todas as respostas lógicas que podem ser dadas à questão da origem do Universo, incluindo as que encontramos nas teorias modernas: “A linguagem é diferente, os símbolos são diferentes, mas, na sua essência, as ideias são as mesmas”. Gleiser acredita que este fascínio seja muito mais primitivo do que o veículo particular escolhido para expressá-lo, seja através da religião organizada ou da ciência.
Para a maioria dos cientistas modernos, a física é apenas um modo racional de estudar a natureza. Mas para outros, a busca do conhecimento científico possui elementos essencialmente místicos, uma espécie de conexão com uma fonte de inteligência superior. (GLEISER, 1997, pág. 18)
O sociólogo Roger Bastide (2006, pág. 132) diz que a nossa disposição de espírito é tão mística por natureza, tão orientada para o sagrado, que criamos mitos a partir de tudo. E que mitos e sonhos se entrelaçam: “Os mitos são a verdade; os sonhos são os meios de acesso à percepção dessa verdade.” [2]
É prudente ressaltar que mitos não são o que comumente se pensa que são. A filósofa Olgária Matos (2022) esclarece que o mito não é uma fantasia, o irracional, mas uma explicação do mundo, “uma forma narrativa que desenvolvemos para dar respostas às interrogações”.[3] Em todo o mundo habitado, em todas as épocas e sob todas as circunstâncias, os mitos humanos têm florescido; da mesma forma, esses mitos têm sido a viva inspiração de todos os demais produtos possíveis das atividades do corpo e da mente humanos, conforme Joseph Campbell, escritor norte-americano[4] que dedicou décadas de estudo aos mitos e religiões de diversas civilizações.
Não seria demais considerar o mito a abertura secreta através da qual as inexauríveis energias do cosmos penetram nas manifestações culturais humanas. As religiões, filosofias, artes, formas sociais do homem primitivo e histórico, descobertas fundamentais da ciência e da tecnologia e os próprios sonhos que nos povoam o sono surgem do círculo básico e mágico do mito. O prodígio reside no fato de a eficácia característica, no sentido de tocar e inspirar profundos centros criativos, estar manifesta no mais despretensioso conto de fadas narrado para fazer a criança dormir da mesma forma como o sabor do oceano se manifesta numa gota ou todo o mistério da vida num ovo de pulga. Pois os símbolos da mitologia não são fabricados; não podem ser ordenados, inventados ou permanentemente suprimidos. Esses símbolos são produções espontâneas da psique e cada um deles traz em si, intacto, o poder criador de sua fonte. (CAMPBELL, 1993, pág. 6)
A maior parte constituinte do homem é inconsciente, nada do que se pense ou deseje pode mudar o inconsciente. Para o crítico de arte Jacob Klintowitz[5], o inconsciente é um magma ardente e vivo, detentor de um repertório infinito e matriz da nossa criatividade.
Somos herdeiros de um inconsciente que sabe, de um inconsciente coletivo que traz registrado a história da espécie, de um código genético que remonta à gênese da vida, de um planeta vivo e de um cosmo dotado de uma existência magnífica. (KLINTOWITZ, 1998, págs. 7 e 8)
O conceito de inconsciente coletivo nasceu com o psiquiatra Carl G. Jung[6], especialmente a partir de seus estudos da psicologia dos povos primitivos e da cultura oriental.
A camada mais profunda que conseguimos atingir na mente do inconsciente não é aquela em que o homem “perde” a sua individualidade particular, mas onde sua mente se alarga mergulhando na mente da humanidade – não a consciência, mas o inconsciente, onde somos todos iguais. Como o corpo tem sua conformação anatômica com dois olhos, duas orelhas, um nariz e assim por diante, e apenas ligeiras diferenças individuais, o mesmo se dá com a mente em sua conformação básica. A esse nível coletivo, não somos mais entidades separadas, somos um. (JUNG, 2015)
Jung disse que o que mais salta à vista, na mentalidade primitiva, é essa falta de diferenciação entre os indivíduos, essa união de sujeito e objeto, a participation mystique, na definição do filósofo e sociólogo Lévy-Bruhl.[7]
A conformação mental do primitivo exprime a estrutura básica da mente humana, aquela camada psíquica que para nós é o inconsciente coletivo, aquele nível subjacente que é o mesmo em todos nós e, devido a tal igualdade básica, não se podem fazer distinções nas experiências que se dão neste nível. Lá não se sabe se aconteceu alguma coisa com você ou comigo. No inconsciente subjacente, há uma inteireza impossível de ser dissecada. (JUNG, 2015)
Jung teve uma conversa significativa com um índio Pueblo, Lagos da Montanha[8], no Novo México.
De repente, uma voz profunda, vibrante de uma emoção secreta, falou atrás de mim, junto ao meu ouvido esquerdo: “Não julgas que toda a vida provém da montanha?” Um índio bastante idoso caminhara silenciosamente em seus mocassins e me propusera essa questão – cujo alcance eu ignorava. Um olhar sobre o rio que desce a montanha deu-me a imagem exterior que fazia nascer aquela ideia. Evidentemente, toda a vida provinha da montanha, pois onde está a água, está também a vida; nada mais evidente. Sentia em sua pergunta uma emoção que se ampliava à palavra montanha e pensei no relato dos ritos misteriosos lá celebrados. Respondi-lhe: “Todos podem crer que dizes a verdade”. (…) Senti que havíamos chegado a um ponto muito delicado, no tocante aos mistérios do clã. “É preciso lembrar que somos um povo – disse o índio – que permanece no teto do mundo; somos os filhos de nosso deus, o Sol, e graças à nossa religião ajudamos diariamente nosso Pai a atravessar o céu. Agimos assim, não só por nós mesmos, mas pelo mundo inteiro. Se cessássemos nossas práticas, em dez anos o Sol não se ergueria mais. Haveria uma noite eterna. (JUNG, 1987, pág. 222)
Jung afirma que compreendeu, então, sobre o que repousava a “dignidade”, a certeza serena do indivíduo isolado.
Era um filho do Sol, sua vida tinha um sentido cosmológico: não assistia ele a seu Pai – que conserva toda a vida – em seu nascente e poente cotidianos? Se compararmos a isso nossa autojustificação, ou o sentido que a razão empresta à nossa vida, não podemos deixar de ficar impressionados com a nossa miséria. Precisamos sorrir, ainda que de puro ciúme, da ingenuidade dos índios e nos vangloriarmos da nossa inteligência, a fim de não descobrirmos o quanto nos empobrecemos e degeneramos. O saber não nos enriquece; ao contrário, afasta-nos cada vez mais do mundo mítico, no qual, outrora, tínhamos direito à cidadania. (JUNG, 1987, pág. 223)
Um dos graves erros da civilização ocidental, segundo Klintowitz, foi manter vedado por muito tempo o acesso ao manancial oceânico do inconsciente, que permite a experiência artística do homem.
A infinita riqueza dessa experiência consiste na qualidade do acordo entre a ação relativamente controlada do fazer e o fluir do inconsciente, deste saber que é nosso, faz parte do nosso ser, mas não está sob nosso controle. Trazer à tona este saber, acreditar na intuição, estruturar este magma em linguagem, é a tarefa do artista maior e uma contribuição única ao desenvolvimento humano. (Klintowitz, 1988, pág. 7)
O corpo no infinito
Qual é a “realidade” da matéria? No documentário Uma Viagem ao Infinito, o físico Anthony Aguirre[9], professor de física da Universidade da Califórnia, Santa Cruz, e PhD em astronomia pela Universidade de Harvard, pergunta: “O que aconteceria com um sistema físico se você só esperasse uma infinidade de tempo?”. E faz uma simulação muito interessante sobre os corpos.
Imagine uma caixa excelente. Nada pode entrar, nada pode sair. Então, colocamos uma maçã na caixa e fechamos hermeticamente. Depois de um mês, a maçã teria um aspecto deteriorado. Em um ano estará estragada, podre, as bactérias agiram. Em 100 anos, a maçã provavelmente será um tipo de poeira. A maçã contém energia química. O mesmo tipo de energia que você teria se comesse ou queimasse uma maçã. Essa energia será liberada em algum momento, então a maçã dentro da caixa ficará muito quente, provavelmente a milhares de graus. Aquelas partículas podem começar a se fundir nuclearmente. Vai levar muito, muito tempo, pois reações nucleares acontecem incrivelmente devagar a milhares de graus, mas vai acontecer. A maçã se transformou em milhões de graus de plasma de partículas fundamentais queimando e se tornando coisas superiores. Em algum momento, você provavelmente vai acabar com um tipo de núcleo de ferro e muitos fótons. Bilhões de anos depois, os nêutrons vão se decompor em prótons e outras partículas fundamentais, e então vão continuar lá durante muito tempo. Pense em como as partículas, os prótons e nêutrons… qual é a experiência deles? Eles só estão girando e obedecendo às leis da física. O estado de caixa está mudando de um para outro constantemente. Se há 10 elevado a 24 partículas na maçã, há algo como 10 elevado a 10 elevado a 24 estados diferentes nos quais aquelas partículas podem estar. Esse é um número gigante, mas não é infinito. E isso significa que, se a caixa ficasse lá por um período infinito de tempo, estaria em todos eles. Ficará em cada estado possível de todos os 10 elevado a 10 elevado a 24. E em algum momento vai começar a recusar os estados nos quais esteve, pois não há outros estados para evoluir. Então, se você esperar muito tempo, algo vai acontecer. Esse é o poder do infinito sobre o finito. Em um determinado momento, você poderia abrir a caixa e achar sua maçã novamente. Como isso aconteceu? Como esse gás quente se transformou em uma maçã? Mas, em algum momento, ele vai. De fato, tudo que é possível existir, vai existir dentro da caixa (imagens de pera, lâmpada, um dado, nuvem, etc., etc.). E eles existirão um número infinito de vezes. Por que isso importa? Bem, nós podemos estar dentro da caixa. (AGUIRRE, 2022, Netflix)
[1] GLEISER, Marcelo. A dança do universo: Dos mitos de Criação ao Big-Bang. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. Págs. 18/19.
[2] BASTIDE, Roger. O sagrado selvagem. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. Pág. 132.
[3] MATOS, Olgária. Disciplina deste pós-graduação: Filosofia: Principais pensadores e fundamentos, Aula 1 / Parte 1.
[4] CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces. São Paulo: Editora Pensamento, 1993. Pág. 6.
[5] KLINTOWITZ, Jacob. A ressacralização da arte. São Paulo: SESC, 1998. Págs. 7/8.
[6] JUNG, Carl Gustav. A Vida simbólica, volume 18/1. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015. Edição Digital. Conferências pronunciadas por Jung em Londres, em 1935, perante um auditório de 200 médicos. Jung enfatiza que “nós, os europeus, não somos as únicas criaturas do mundo. Somos apenas uma península da Ásia, e naquele continente há velhas civilizações onde as pessoas treinaram suas mentes em psicologia introspectiva durante milhares de anos, enquanto nós começamos com a nossa psicologia não ontem, mas hoje de manhã. Tive que estudar coisas orientais para entender certos fatos do inconsciente. Tive que voltar atrás para entender o simbolismo oriental. Tive que estudar não só literatura chinesa e hindu, como também literatura sânscrita e manuscritos latinos de origem desconhecida até mesmo de especialistas.”
[7] Participation mystique é um conceito criado pelo antropólogo francês Lucien Lévy-Bruhl, que identificou o fenômeno em povos primitivos. Trata-se, nas palavras de Jung, de "uma espécie singular de vinculação com o objeto", vinculação através da qual o sujeito não consegue se diferenciar com clareza do objeto. Conforme Jung, a participation mystique ocorria com mais frequência nos povos primitivos do que nos "civilizados". Nestes, ocorre principalmente entre duas pessoas, e mais raramente entre uma pessoa e um objeto. A participação mística com outra pessoa é um caso de transferência.
[8] JUNG, Carl Gustav. Memórias Sonhos Reflexões. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1987. Págs. 222 e 223.
[9] AGUIRRE, Anthony. Uma Viagem ao Infinito. Capítulo 7, minuto 42. Netflix: 2022.
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Foto da Capa: Sebastian Ed / Pixabay