Os povos originários, como já vimos, desde sempre permitiram o fluir do inconsciente e nos proporcionam riqueza de sentido através da sua arte. O filósofo, ativista e pintor Ailton Krenak, por exemplo, retrata em suas obras a ideia do perspectivismo ameríndio. A historiadora, antropóloga e professora Lilia Schwarcz[1] destaca o trabalho de Krenak.
Ailton Krenak é pintor também, impressionante a maneira como ele traz nas suas obras a ideia do perspectivismo, que é uma inversão do nosso suposto. Qual é a nossa divisão ontológica do ocidente? Que nós temos uma natureza para várias culturas. O suposto do perspectivismo é o contrário: que nós temos uma cultura para várias naturezas e que todos os homens já foram animais. Portanto, é o contrário do nosso suposto. Ou seja, que os animais viraram homens. É o oposto, os homens é que serão animais. (SCHWARCZ, 2022)
Na visão filosófica do perspectivismo, o pensamento, a percepção da realidade, é alterável conforme os indivíduos – o alterável são as percepções que se têm de um objeto e não o objeto em si. O conceito foi criado pelo filósofo alemão Gottfried Leibniz e teve em Friedrich Nietzsche um profícuo defensor. Nietzsche mostrou que as múltiplas perspectivas do mundo, da realidade, não podiam obter consenso, uma verdade objetiva, pois na psique de cada indivíduo o real é subjetivo, é uma interpretação que descarta inúmeras outras perspectivas. O que o perspectivismo faz é ampliar a visão do mundo. Para o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty, há algo que antecede a elaboração consciente do mundo e mesmo a pura sensação do mundo.
No perspectivismo ameríndio, se dá a abertura para o Outro, na visão sobre as interações entre humanos e não humanos. A natureza não existe em si mesma objetivamente, mas como efeito de um ponto de vista – o que é natureza para uns, é cultura para outros. O que determina um ponto de vista é o corpo em sua especificidade, naquilo que ele é capaz, muito além dos seus aspectos fisiológicos. Lucas da Costa Maciel[2] define:
O modo em que os mundos ameríndios estão regidos leva a pressupostos que são irredutíveis à noção moderna-ocidental de relativismo cultural. A unidade da alma e a multiplicidade dos corpos para as quais apontam essas ontologias levariam não ao multiculturalismo moderno-ocidental, mas a um multinaturalismo ameríndio, em que a cultura é o fundo comum de uma multiplicidade de naturezas que se desdobram dos corpos. Assim, a condição compartilhada por humanos e animais não é a animalidade (como para a ciência moderna, segundo a qual os humanos pertencem ao reino animal), mas a humanidade. Essa característica é evidente nos mitos; estes remetem a um tempo-espaço virtual em que os diferentes seres se comunicavam e se reconheciam como reciprocamente humanos. Os mitos contam acontecimentos que incorrem na especiação dos seres, que passam a não mais se reconhecerem como humanos, a depender da formação de seus corpos. (…) A humanidade à qual o perspectivismo ameríndio se refere não é a da noção de espécie humana (humankind), mas a da condição reflexiva de sujeito (humanity). (MACIEL, 2019, págs. 1 a 3)
É assim que podemos perceber paralelos do perspectivismo ameríndio com a física atômica (no papel do observador ativo), o misticismo (quando observador e objeto observado se fundem), o inconsciente coletivo e os mitos de Criação. Maciel discorre em seu ensaio que os termos ameríndios comumente traduzidos como “humanos” são formas de autodesignar o lugar da pessoa, no ponto de vista de quem se nomeia.
São expressões pronominais que marcam o ponto de vista a partir do qual se forma o sujeito, ou para quem ele é humano. Isto é importante porque revela qual é o sujeito que está ativado pela perspectiva enunciada. A realidade é produzida por uma continuidade metafísica (dada pela potencialidade da alma) e por uma descontinuidade física (dada pelos diferentes pontos de vista que se desdobram dos corpos). Daí decorre a elaboração central de que a diferença é da ordem do mundo que se forma a partir de um sujeito específico (multinaturalismo perspectivista), e não da sua elaboração cultural (relativismo cultural ou multiculturalismo). (…) Eduardo Viveiros de Castro e Tânia Stolze Lima têm apontado, ademais, que o perspectivismo deve ser entendido como um mecanismo de descolonização do pensamento; ele não serviria para descrever os mundos ameríndios, mas para formar uma pragmática da especulação, para pensar o que pode se tornar plausível e operar aberturas no real que nos permitam, como declarou recentemente Lima, “pensar na presença dos índios”. (MACIEL, 2019, págs. 1 a 3)
O pensamento ocidental foi todo baseado numa forma antiga do pensamento grego. De acordo com este modo de pensar, unicamente Ser, é. Em consequência, Não-ser não é. Esta forma de pensar nos oferecia uma ferramenta prática para atuar no mundo, mas não descreve o que acontece. Na realidade, Não-ser também é. Ambos, Ser e Não-ser são aquilo-que-é. Tudo, até mesmo o vazio, é aquilo-que-é. Não há nada que não seja aquilo-que-é. Gary Zucav[3], professor de espiritualidade formado pela Universidade de Harvard (EUA), explica que a matéria é uma forma da ordem implicada, assim como um vórtice é uma forma da água – que não é redutível a partículas menores.
Como a “matéria” ou qualquer outra coisa, as partículas são formas da ordem implicada. Se isto é difícil de captar, é porque nossas mentes querem saber o “que é a ordem implicada e ordem implicada de quê?”. A “ordem implicada” é a ordem implicada daquilo-que-é. Portanto, aquilo-que-é é a ordem implicada. Esta visão do mundo é tão diferente da que costumamos ter que, como Bohm* acentua, “a descrição é totalmente incompatível com o que nós queremos dizer”. Esta forma de contemplar a realidade faz surgir a pergunta da consciência do observador. Nossa mente tenta decifrar a “ordem implicada” porque a cultura ensinou-nos a perceber unicamente a ordem explicada (a visão cartesiana). (ZUCAV, págs. 318 e 319)
[1] SCHWARCZ, Lilia Moritz. Disciplina deste pós-graduação: Sociologia e História do Brasil Contemporâneo, Aula 2 / Parte 3.
[2] MACIEL, Lucas da Costa. Perspectivismo ameríndio, In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia, 2019. Pàgs 1 a 3.
[3] ZUKAV, Gary. A dança dos mestres Wu Li, uma visão geral da nova física. Editora ECE, São Paulo, 1989. Págs. 318 e 319. Este foi o livro de estreia de Zucav e vencedor do American Book Award for Science. *David Joseph Bohm é considerado um dos físicos mais importantes do século XX, que contribuiu com ideias não ortodoxas à teoria quântica, neuropsicologia e filosofia da mente.
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Foto da Capa: Yaka Huni Kuin na 34ª Bienal de São Paulo (2021). Karina Bacci / Divulgação