Ao nos abrirmos às narrativas que não temos poder de traduzir em nossa língua, alargamos consciência, percebendo a conexão entre todos os corpos vivos, com suas equivalências e origens evolutivas
Semana passada, falamos sobre informações genéticas que nosso corpo carrega de todas as etapas da vida, desde as origens deste planeta e talvez até mesmo dos quase 14 bilhões de anos do universo. Na semana ainda anterior, citei a vitivinicultura natural como exemplo de negócio que cria uma cultura de respeito ao ambiente e ao corpo, a todos os corpos. São assuntos interligados, pois na amplitude da produção de alimentos naturais, orgânicos, biodinâmicos, percebemos a conexão entre todos os corpos vivos, com suas equivalências e origens evolutivas. É um movimento de resgate ancestral, com aporte tecnológico, que gera grande impacto na sociedade.
A grandeza de nossa espécie geralmente é reconhecida pela capacidade de narrar experiências através da linguagem, dos símbolos, o que promoveu a coesão de grupos humanos. Mas ao nos abrirmos às narrativas que não temos poder de traduzir racionalmente, enriquecemos nossa experiência, alargamos consciência. Só aqui no planeta, são inumeráveis corpos e tanta diversidade, a beleza da Vida. Quanto mais trocamos, mais ganhamos.
Esse corpo que nos carrega por aí, não é só nosso. É um habitat terreno e cósmico com várias instâncias coexistindo, ao ponto de a ciência determinar que apenas 10% se constitui humano. Só em bactérias e fungos são mais de 100 trilhões que nos habitam, e ainda um manancial de água com seus íons e gases, o ferro no sangue, o cálcio nos ossos – é o mesmo material de que também é feito nosso sistema solar. Tudo em troca constante com o ambiente, a atmosfera, promovendo nosso equilíbrio. Corpos animais são mais evidentes por sua mobilidade, sua capacidade de se locomoverem de um lugar a outro por conta própria. Corpos vegetais permanecem na origem, fincados ao solo de onde brotaram e se valem de outros elementos para empreender movimentos necessários para a reprodução e a nutrição, como o vento e os fungos. Respeitar o ambiente é a virada da chave, o salto qualitativo da humanidade.
A famosa vitivinicultora Filipa Pato, de Portugal, deu o salto com a conversão dos 20 hectares da sua propriedade para o cultivo orgânico. Um ato consciente que teve seu custo – chegou a perder 30% das vinhas no processo – e, por fim, uma enorme recompensa. “A vinha acostumada com pragas sofre muito quando você tira os pesticidas. Aquilo é como uma droga. Na ausência dela, as plantas ficam muito frágeis e precisam de um tempo para se purificar”, afirmou ao site NeoFeed. Hoje Filipa tem todo um sistema de intercâmbio entre plantas auxiliares, floresta e animais, que colabora para o desenvolvimento biodinâmico da propriedade. Porquinhos reviram o solo, o arejando e eliminando ervas daninhas e se coçam nos troncos das videiras, contribuindo para sua limpeza e sanidade. Ela disse também que “os ciclos lunares têm um dos impactos mais notáveis desde as primeiras folhas até a colheita. Um envolvimento total nos movimentos da Terra e da Lua permite intervir no melhor momento possível, o que pode compensar os caprichos do tempo”.
Conversei sobre a dependência química das plantas com o vinicultor Cristian Ávila da Silva, da Casa Vivá, em Porto Alegre, e ele me explicou que “o problema começa já no uso de fertilizantes no solo, pois é uma substância estranha ao corpo da videira. Não tendo como buscar seu alimento em outro lugar, enraizada em um solo encharcado de química, a videira adoece. Para combater as doenças oportunas, recebe defensivos agrícolas, agrotóxicos, que matam não só o que é ruim, mas também o que é bom no corpo da planta. O resultado é que a uva brota enfraquecida, adulterada. Ao ser transformada em vinho, exige complexas elaborações com aditivos químicos para render uma bebida palatável, mas de todo estranha ao nosso corpo, que sofre igualmente com tantas substâncias mortíferas circulando na corrente sanguínea. Na retirada dos venenos, o corpo da planta sente a abstinência, tal qual um corpo humano no processo de desintoxicação”.
Paulo Backes, agrônomo e vinicultor, da Monte Vinhos de Autor, comenta que lhe perguntam porque fermentar mostos com as leveduras selvagens, indígenas, nativas do vinhedo de onde vieram as uvas e da flora microbiológica da cantina. Ele explica que são várias razões, “mas talvez a principal seja a de trabalhar com biodiversidade. Somos o resultado de bilhões de anos de evolução biomolecular e nossa saúde depende de estarmos conectados com essa história da vida no planeta. O que significa isso na prática do dia a dia? Significa que quanto maior o número de substâncias que ingerirmos, aspirarmos ou absorvermos, maiores as chances de sermos saudáveis. Um exemplo concreto é nosso sistema de defesa. Nossa imunidade depende de biodiversidade molecular para funcionar bem. E as fermentações biodiversas produzem uma quantidade muito maior de substâncias do que aquelas produzidas por uma única cepa de levedura selecionada. No vinho, produzem maior complexidade de aromas e sabores”.
Cristian, além de vinicultor de mão cheia, com seus vinhos de elegante paladar, como o Traminer, montou a maior adega de vinhos naturais da América Latina e, junto com sua mulher Kely Bavaresco, está desenvolvendo essa cultura de consciência corporal. Eles cultivam uma horta de pancs no próprio terreno da Casa Vivá, onde montaram também uma queijaria com incríveis peças artesanais de várias regiões e uma cozinha orgânica, onde são elaborados menus degustações para harmonizar com os vinhos. Cristian conduz as pessoas através dos vinhos, das comidas e da história dos lugares e de seus produtores, seguindo uma tendência que se fortalece cada vez mais na gastronomia, de conhecimento e valorização de quem está no cultivo da terra, dos produtos naturais, na origem do que vem à mesa.
É terroir, um encanto de palavra que define “o conjunto de coisas físicas, biológicas e culturais que dão identidade a um território”, como diz Paulo Backes, e detalha: “A vinha reproduz em suas bagas o que ela encontra no solo, nas rochas, no clima e nas mãos humanas que nela trabalham. Beber vinho é beber uma paisagem”. É esse tipo de experiência magnífica que podemos ter na Casa Vivá e nos eventos plurais que a Monte Vinhos de Autor vem promovendo em Porto Alegre, como o Vinho no Vila Flores e agora, no próximo dia 25, Uma tarde de vinho natural no Centro Histórico. Consciência corporal que nos eleva a outra dimensão sensorial. Nosso corpo, todos os corpos, o universo – interligados.
@casaviva – Rua Barão de Sto. Ângelo 376, Moinhos de Vento, Porto Alegre
Reservas: api.whatsapp.com/send?phone=555181173364
Vinho Natural no Centro Histórico (Porto Alegre)
Sábado, dia 25/11, entre 14h e 20h.
Será apresentada uma seleção especial de vinhos para harmonizar com o estilo gastronômico de bares, cafés, padarias e restaurantes – um roteiro de sabor e interação com os belos espaços do centro.
Vinhateiros participantes:
@montevinhosdeautor – Paulo Backes e Mário Saavedra
@fincatuira
@cantina_mincarone
@outrovinho
@vinhosdaruadourtigao
@faccinvinhosartesanais
@marimonioalberto
@vivavinhosnaturais
@caveposeidon
Locais participantes:
@paoemariapadaria
@moacafeteria
@montevinhosdeautor
@sindicocafe
@lolaccmq
Os ingressos já estão à venda no Sympla aqui
Foto da Capa: Paulo Backes